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Cientista da Unifesp que pesquisa maconha é acusado de apologia ao crime

Elisaldo Carlini, professor emérito da Universidade Federal de São Paulo, 87 anos, foi intimado a prestar depoimento em delegacia após convidar um líder rastafári (que está preso por tráfico de drogas) para participar de um simpósio sobre maconha no ano passado. Pedido de inquérito foi feito pelo Ministério Público

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Por Herton Escobar
Atualização:

Elisaldo Carlini, professor emérito da Unifesp, é um dos maiores especialistas do Brasil na pesquisa de drogas. Foto: Dida Sampaio/Estadão (2006)

O professor Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), um dos mais renomados cientistas brasileiros e referência internacional no estudo de drogas, foi intimado a depor numa delegacia de São Paulo esta semana, acusado de fazer apologia ao crime. A acusação, feita por uma promotora de Justiça, foi motivada por um convite que Carlini fez ao líder rastafari Ras Geraldinho (preso por tráfico de drogas desde 2013) para participar de um simpósio multidisciplinar chamado Maconha: Outros Saberes, em maio do ano passado.

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O pedido para que Ras Geraldinho fosse autorizado a participar do evento foi indeferido (negado) pelo juiz competente, mas a promotora Rosemary Porcelli da Silva, ao tomar conhecimento do fato, se declarou "indignada" e considerou haver "fortes indícios de apologia ao crime" na solicitação dos pesquisadores. Ela enviou ofício à Promotoria Criminal da Capital, que determinou a instauração de um inquérito policial, em julho de 2017. Toda a comissão organizadora do evento foi intimada a prestar depoimento.

Resultou que na quarta-feira (21 de fevereiro), Carlini, de 87 anos, e o pesquisador Renato Filev, do Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) da Unifesp, prestaram depoimento no 16º Distrito Policial, na Vila Clementino. Eles explicaram que o simpósio se tratava de um evento acadêmico multidisciplinar, e que Ras Geraldinho fora convidado a participar de uma mesa redonda sobre filosofia e religião, por conta da relação da religião rastafári com a maconha (Geraldinho foi preso por plantar maconha numa chácara da igreja em Americana, que ele dizia ser para fins religiosos). A programação incluía ainda mesas de discussão sobre cultura, justiça, história e outros temas. Mais detalhes abaixo.

O evento era de 8 a 11 de maio, próximo ao Dia da Mães (14), quando presos podem receber autorização para deixar a cadeia temporariamente, para visitar a família.

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 Foto: Estadão

"Queremos saber o que as pessoas pensam sobre a maconha", contou Carlini ao Estado, ressaltando que a discussão envolve uma série de questões sociais e culturais, e não pode ser restrita apenas à medicina -- apesar de ele mesmo ser médico e farmacologista.

Professor emérito da Unifesp e diretor do Cebrid, Carlini foi um dos pioneiros na pesquisa dos efeitos terapêuticos de derivados da maconha, que hoje servem de base para medicamentos que são utilizados em diversos países para o tratamento de epilepsia, esclerose múltipla e outras doenças. Ele esclarece que nunca defendeu o uso recreativo da droga, apenas o seu uso medicinal; e nega ter feito qualquer tipo de apologia ao crime. Ele tem mais de 100 trabalhos científicos publicados, com mais de 12 mil citações -- uma marca altíssima de relevância acadêmica.

Os depoimentos colhidos pelo delegado foram encaminhados ao Ministério Público, que poderá denunciar os pesquisadores (se entender que eles praticaram crime) ou arquivar o caso.

"É um caso evidente de abuso de poder. Não houve crime, e não havia razão para abertura de inquérito policial", disse ao Estado o advogado Cristiano Maronna, que representa Carlini. Ele lembra que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, num caso relacionado à Marcha da Maconha, que simplesmente falar sobre a droga não configura apologia, muito menos crime.

"Estamos perplexos, mas ao mesmo tempo aproveitando a oportunidade para discutir políticas de drogas, que há muito tempo dão sinais de falência; e o Brasil segue estagnado nessa questão", disse Filev ao Estado

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A reportagem entrou em contato com o Ministério Público de São Paulo, que informou que a promotora Rosemary não daria entrevista sobre o assunto.

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Entidades científicas e acadêmicas saíram imediatamente em defesa de Carlini.

"Sua carreira e sua trajetória como intelectual e cientista demonstram claramente que o Prof. Carlini vive uma vida acadêmica em dedicação exclusiva", disse a Unifesp, em nota. "Em um momento no qual as universidades públicas, que desenvolvem pesquisa de qualidade, lutam para continuar realizando ciência e formação, além de projetos sociais, torna-se ainda mais importante defender a vida e a obra do Prof. Elisaldo Carlini. Também é fundamental defender a importância do desenvolvimento científico, sem o qual não se pode conquistar a evolução para a condição humana."

"Acusar o Dr. Carlini de apologia às drogas equivale a criminalizar a inteligência e o conhecimento técnico-científico. Trata-se de uma provocação cruel e vazia contra um cientista que dedicou toda sua vida à fronteira do conhecimento", declararam a Academia Brasileira de Ciências (ABC, da qual Carlini é membro titular) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). "O Dr. Elisaldo Carlini é imprescindível e sua carreira é uma apologia à vida."

Próximo de completar 88 anos, Carlini tem câncer e sofre de problemas cardíacos, mas garante estar "mais ativo do que nunca". "Não quero morrer parado", disse.

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Saiba mais: Em 2017 o programa USP Talks realizou dois eventos sobre maconha e políticas de drogas. Veja os vídeos abaixo, com palestras dos pesquisadores José Alexandre Crippa (USP Ribeirão), Ronaldo Laranjeira (Unifesp), Luís Fernando Tófoli (Unicamp) e Ilona Szabó (Instituto Igarapé).

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