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Cientistas desenvolvem produto com base em veneno de cascavel para regular coagulação sanguínea

Substância da cobra tem potencial de causar hemorragia em quem é picado. No entanto, pesquisa identificou que o efeito é contrário quando a proteína do veneno é utilizada na pele

Por André Julião
Atualização:

Pesquisadores do Brasil e da Bélgica desenvolveram uma molécula de interesse farmacêutico com base em uma proteína encontrada no veneno da cascavel, a PEG-collineína-1. Ao aplicarem uma técnica que a torna mais estável no organismo e resistente ao sistema imune, os cientistas obtiveram um potencial novo fármaco capaz de modular a coagulação sanguínea. Resultados da pesquisa foram publicados recentemente no International Journal of Biological Macromolecules.

As cascavéis se alimentam principalmente de pequenos roedores, mas podem usar seu veneno para atacar outras vítimas, como pequenas aves, coelhos, lagartos, e até outras cobras Foto: Foto-Rabe/Pixabay

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“A técnica tem como objetivo manter a PEG-collineína-1 circulante no organismo por mais tempo, o que pode reduzir o intervalo entre as administrações caso se torne um medicamento. Além disso, reduz a degradação por componentes do organismo humano e melhora suas propriedades funcionais”, conta Ernesto Lopes Pinheiro Júnior, primeiro autor do artigo. Hoje pesquisador na Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, ele realizou o trabalho no doutorado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), com bolsa da Fapesp.

Chamada de peguilação, a técnica consiste em agregar polietilenoglicol (PEG) à molécula de interesse. Entre outras propriedades, o PEG diminui a interação com o sistema imune, além de impedir a formação de agregados que diminuem a atividade da molécula pelo organismo. “A peguilação é bastante comum na indústria farmacêutica. Há 19 medicamentos que utilizam a técnica já aprovados. É a primeira vez, porém, que o método foi usado em uma toxina animal, na sua forma recombinante [produzida em laboratório por um fungo geneticamente modificado]”, diz Eliane Candiani Arantes, professora daUSP e orientadora do estudo.

Técnica envolve clone de gene

Obtida da peçonha de uma subespécie de cascavel, Crotalus durissus collilineatus, a collineína-1 consome o fibrinogênio, composto presente no sangue responsável pela coagulação. No veneno da cascavel, ajuda a causar a hemorragia em quem é picado pela serpente. Isolada e administrada em pequenas doses, porém, pode impedir a formação de trombos que causam o acidente vascular cerebral (AVC), por exemplo.

Quando usada em aplicações tópicas (diretamente na pele), a collineína-1 pode ter efeito contrário, coagulando o sangue em feridas de difícil cicatrização. Por isso, também tem grande potencial para uso em curativos. Obter a molécula em quantidade suficiente diretamente da cascavel, porém, dependeria de manter um grande serpentário, com profissionais qualificados para extrair a peçonha. Mas, em trabalhos anteriores, o grupo já havia solucionado esse problema.

Ainda durante o mestrado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Johara Boldrini-França, coautora do estudo, conseguiu clonar o gene produtor da collineína-1. Posteriormente, criou uma versão da levedura Pichia pastoris que carrega o gene da serpente que codifica a proteína.

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Também coordenado por Arantes, o estudo de Boldrini-França continuou durante o doutorado e o pós-doutorado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, em Ribeirão. “Essa estratégia é bastante utilizada na indústria farmacêutica. Parte da insulina produzida hoje, por exemplo, é a partir de leveduras que produzem essa proteína humana”, afirma Boldrini-França, que atualmente realiza pós-doutorado na Universidade de Vila Velha (UVV).

Além de não depender da extração de peçonha de serpentes, as vantagens incluem a facilidade de manipulação do microrganismo em laboratório, o baixo custo e a produção em escala, que pode ser feita em biorreatores.

'Era improvável dar certo', diz cientista

No estágio de pós-doutorado na Universidade Católica de Leuven, Boldrini-França resolveu testar a proteína recombinante – como é chamada a versão produzida pela levedura – em estruturas presentes em diversos tipos de tumores. “Era algo improvável de dar certo, uma vez que a collineína-1 é considerada uma proteína grande e costumamos testar moléculas menores nos chamados canais iônicos, que são os alvos de alguns medicamentos contra o câncer”, relata Arantes.

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Para a surpresa do grupo, a proteína recombinante agiu sobre um determinado tipo de canal para potássio presente em uma linhagem de tumor de mama, reduzindo a sua viabilidade sem afetar tecidos saudáveis. O trabalho foi publicado no ano passado na revista Scientific Reports.

Quando usada a versão peguilada da molécula, porém, não houve atividade anticancerígena. “A propriedade antitumoral não depende da atividade enzimática da molécula, apenas do tamanho dela, que bloqueia o canal para potássio. Com a peguilação, porém, ela ficou grande demais e não se encaixou nesse alvo”, diz Boldrini-França. “Em muitos casos, a peguilação é capaz de levar uma molécula da bancada do laboratório para a indústria. É o que pretendemos agora”, encerra Pinheiro-Junior.

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