Cientistas desvendam mistério do 'bisão de Higgs'

Novo estudo confirmou existência de enigmática espécie pré-histórica de bisão e revelou que ela teve origem na mistura de duas outras espécies extintas

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Por Fabio de Castro
Atualização:
Bisão-europeu moderno (Bison bonasus), fotografado na floresta de Bialoweza, na Polônia; a espécie descende do "bisão de Higgs", um híbrido entre o bisão da estepe, extinto na Era do Gelo e o auroque, extinto no século 17. Foto: Rafal Kowalczyk

Uma misteriosa espécie pré-histórica de bisões intrigava os cientistas há anos: certos sinais genéticos de fósseis desses animais mostravam que eles eram totalmente diferentes de qualquer outra espécie de bisão - moderna ou extinta. 

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Um novo estudo finalmente desvendou o mistério da espécie que ficou conhecida pelos cientistas como "bisão de Higgs", em alusão ao bóson de Higgs, partícula cuja existência era prevista pelos físicos desde a década de 1960, mas só foi confirmada em 2012.

A pesquisa revelou queo "bisão de Higgs" teve origem há 120 mil anos, a partir da hibridização entre duas espécies extintas: o auroque, ancestral dos bovinos modernos e o bisão da estepe, que viveu na Era do Gelo na Europa e na América do Norte. Além disso, o estudo concluiu que o "bisão de Higgs" foi o ancestral do bisão-europeu moderno, cuja origem até hoje era considerada incerta. 

De acordo com os autores do estudo, as pinturas rupestres da Era do Gelo, que retratam bisões em inúmeras cavernas na Europa, são coerentes com a descoberta e mostram, ao longo do tempo, modificações na aparência dos animais que coincidem com o aparecimento do bisão-europeu. Em outras palavras, os artistas pré-históricos documentaram a evolução do bisão.

Bisão-europeu moderno (Bison bonasus); essa espécie foi reduzida a apenas 12 indivíduos na década de 1920 e hoje só existe em reservas de conservação, como a da floresta de Bialoweza, na fronteira entre a Polônia e Belarus, onde foi feita a imagem. Foto: Rafal Kowalczyk

Liderado por cientistas da Universidade de Adelaide, na Austrália, o estudo foi publicado nesta terça-feira, 18, na revista Nature Communications. Para chegar a suas conclusões, os cientistas combinaram análises de DNA antigo e análises de pinturas rupestres.

"Descobrir que a hibridização levou a uma espécie completamente nova foi uma verdadeira surpresa, já que isso não acontece normalmente com mamíferos", disse o autor principal do estudo, Alan Cooper, diretor do Centro Australiano de DNA Antigo, da universidade australiana.

"Os sinais genéticos encontrados em ossos de bisões antigos eram muito estranhos, mas ninguém tinha muita certeza se essa espécie existia de fato - então nos referíamos a ela como 'bisão de Higgs'", explicou Cooper.

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Registros fósseis apontavam que na pré-história havia duas formas principais de bovinos na Europa: os auroques, extintos no século 17, e o bisão da estepe. Mas as origens do bisão-europeu - que têm história evolutiva bastante distinta do bisão-americano -, eram bastante obscuras graças à falta de registros fósseis. Até agora, a única certeza sobre o bisão-europeu era que ele surgiu subitamente há cerca de 11,7 mil anos, logo após o desaparecimento do bisão da estepe.

Reprodução de uma pintura rupestre de cerca de 17 mil anos, em parede da caverna Pergouset, perto de Ardèche, na França; é provável que o artista tenha retratado o bisão-europeu, que surgiu da hibridização entre o auroque e o bisão da estepe. Foto: Carole Fritz e Gilles Tosello

Alternância. Os cientistas liderados por Cooper analisaram o genoma antigo extraído dos ossos e dentes de 64 bisões em quatro cavernas na Europa, nos Urais e no Cáucaso, a fim de rastrear a história genética desses animais. Os sinais genéticos encontrados nesses fósseis eram totalmente diferentes dos encontrados no bisão-europeu e em qualquer outra espécie conhecida.

Fazendo datação dos fósseis com radiocarbono, os cientistas mostraram que o "bisão de Higgs" dominou a Europa por milhares de anos, mas essa predominância era alternada, ao longo do tempo, com o bisão da estepe - que até agora era considerada a única espécie de bisão presente na Europa no fim da Era do Gelo.

"Os ossos datados revelaram que nossa nova espécie e o bisão da estepe revezaram a dominância na Europa por várias vezes, variando de acordo com alterações ambientais causadas por mudanças climáticas", disse o autor principal do estudo, Julien Soubrier, da Universidade de Adelaide.

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"Quando fomos perguntar a opinião de pesquisadores que estudam a arte em cavernas na França, eles nos disseram que, de fato, havia duas formas distintas de representação de bisões nas cavernas, durante a Era do Gelo. A idade dessas pinturas se encaixa perfeitamente com a alternância das duas espécies. Nunca tínhamos imaginado que os artistas das cavernas tinham deixado para nós úteis retratos de ambas as espécies", disse Soubrier.

Retratos. Nas cavernas, as pinturas mais antigas, com mais de 18 mil anos, retratam os bisões com longos chifres e a parte dianteira proeminente - uma aparência semelhante à do bisão-americano, que descende do bisão da estepe. Em pinturas mais recentes - de 12 mil a 17 mil anos -, o animal é retratado com chifres curtos e costas pequenas, como o bisão-europeu moderno.

"Assim que se formou, a nova espécie híbrida parece ter sido bem-sucedida em encontrar um nicho na paisagem e conseguiu assim se manter geneticamente", disse Cooper. Segundo ele, o "bisão de Higgs" predominou em períodos mais frios, em paisagens que se assemelhavam à tundra. 

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Segundo Cooper, o "bisão de Higgs" é o ancestral do bisão-europeu, mas parece ser uma espécie totalmente nova, porque o animal moderno sofreu consideráveis modificações em tempos recentes. 

Reprodução de um desenho feito com carvão, há cerca de 30 mil anos, representando um bisão da estepe, em parede da caverna Chauvet-Pont d'Arc, perto de Ardèche, na França. Foto: Carole Fritz e Gilles Tosello
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"No entanto, o bisão-europeu moderno parece bem distinto geneticamente, porque essa espécie passou por um gargalo genético muito estreito, que quase os levou à extinção: apenas 12 indivíduos existiam na década de 1920".

Beth Shapiro, da Universidade da Califórnia em Santa Cruz - que também participou do novo estudo -, foi a primeira cientista a detectar o "bisão de Higgs", em sua pesquisa de doutorado orientada por Cooper na Universidade de Oxford (Reino Unido), em 2001. "Quinze anos depois, é ótimo finalmente desvendar a história inteira. Foi com certeza um longo caminho, com um surpreendente número de reviravoltas", afirmou Beth.