PUBLICIDADE

Discursos contra cortes e obscurantismo marcam Marcha pela Ciência em São Paulo

No Largo da Batata, cerca de 300 pessoas participaram do evento neste sábado; lideranças científicas falaram sobre a situação difícil da ciência nacional, que teve orçamento cortado pela metade em março e se manifestaram contra ideias anticientíficas

Por Herton Escobar
Atualização:

Cerca de 300 pessoas participaram neste sábado, 22, da Marcha pela Ciência em São Paulo, no tradicional Largo da Batata — palco histórico de manifestações na capital paulista. A organização não tinha licença para circular pela cidade, por isso o evento foi organizado como uma espécie de feira de ciências, com várias tendas que levavam o nome de cientistas brasileiros e traziam atrações temáticas, como coleções de insetos, culturas de bactérias e réplicas de fósseis. A chuva, o frio e o fato de ser um feriado prolongado ajudaram a manter o público pequeno.

Hernan Chaimovich, professor do Instituto de Química da USP, discursa debaixo de chuva na Marcha pela Ciência em São Paulo, no Largo da Batata; cerca de 300 pessoas participaram do evento neste sábado, 22. Foto: Herton Escobar/Estadão

PUBLICIDADE

Lideranças científicas revezaram-se ao microfone para discursar sobre a situação difícil da ciência nacional — que teve seu orçamento de 2017 cortado quase que pela metade no mês passado — e a necessidade de convencer a sociedade e os governos da importância da pesquisa científica para o desenvolvimento do país. “Chega de nos classificar como gasto; nós somos investimento”, disse a presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Helena Nader. “A nossa economia sobrevive por causa da ciência”, completou ela, citando os exemplos do agronegócio e da exploração de petróleo em águas profundas pela Petrobras.

“Durante muito tempo ficamos encerrados em nossos laboratórios achando que o respeito pela ciência seria óbvio”, disse o bioquímico Walter Colli, professor aposentado da Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP). “Ledo engano”, ressaltou. “Temos que recuperar o tempo perdido.”

“Cada um de vocês tem a responsabilidade de ser um fator multiplicador, para fazer com que esse Brasil ouça a ciência”, disse, debaixo de chuva, o pesquisador Hernan Chaimovich, bioquímico da USP e ex-presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “A ciência não só faz as pessoas mais inteligentes, não só faz a economia funcionar mais rápido, não só rompe a iniquidade social; a ciência faz as pessoas acreditarem na democracia”, afirmou. “Não estamos somente dizendo que a comunidade científica vai desaparecer se o orçamento não aumentar. Estamos dizendo que o que está em risco é a democracia, é a inteligência, é o país.”

Pedro da Glória, pesquisador do Instituto de Biociências da USP, prepara mostra de réplicas de crânios de hominídeos na Marcha pela Ciência de São Paulo; aorganização não tinha licença para circular pela cidade, por isso o evento foi organizado como uma espécie de feira de ciências. Foto: Herton Escobar/Estadão

A também química Vanderlan Bolzani, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), ressaltou que o Brasil levou décadas para construir seu sistema nacional de pesquisa e desenvolvimento, permitindo que o país deixasse de ser visto apenas como o país do futebol e passasse a ser reconhecido internacionalmente, também, como um país produtor de ciência e tecnologia. “Agora, de repente, tudo isso pode andar para trás”, disse, em entrevista ao Estado. “Corremos o risco de retroceder e perder tudo que conquistamos durante todos esses anos.”

Os investimentos em ciência e tecnologia no país vêm encolhendo há quatro anos. E agora, com esse último contingenciamento, o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) despencou para metade do que era dez anos atrás, em valores corrigidos. Segundo pesquisadores, os recursos disponíveis não são suficientes nem mesmo para quitar os restos a pagar e honrar os editais e outros compromissos já assumidos no ano passado.

Obscurantismo. Outro tema muito citado no evento, além dos cortes orçamentários, foi a preocupação da comunidade científica com o que muitos consideram ser um ressurgimento do “obscurantismo” — termo usado para se referir a ideias anticientíficas ou pseudocientíficas, como a negação do aquecimento global e a propagação de terapias ou remédios sem comprovação de eficácia. “Estamos aqui para dizer não ao obscurantismo. Ciência é evidência”, disse Helena Nader. 

Publicidade

Uma das tendas do evento trazia uma exposição sobre evolução humana, com réplicas de crânios de hominídeos (antepassados do Homo sapiens), organizada pelo laboratório do professor Walter Neves, do Instituto de Biociências da USP. “Na minha área de pesquisa o país está à beira de uma catástrofe”, discursou Neves, chamando atenção não só para a falta de recursos, mas também do crescimento das bancadas evangélicas na política — que são contra o ensino da evolução. “Vamos nos tornar o segundo maior país criacionista do planeta (atrás dos Estados Unidos). Não tenho dúvidas que daqui a alguns anos vão tentar proibir o ensino da evolução nas escolas.” 

Para evitar isso, segundo ele, é preciso que os cientistas se envolvam muito mais com a educação científica e a divulgação da ciência para o grande público.

A Bióloga Natália Pasternak, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, discursa na Marcha pela Ciência em São Paulo, no Largo da Batata; achuva, o frio e o fato de ser um feriado prolongado ajudaram a manter o público pequeno, mas o evento chegou a reunir cerca de 300 pessoas. Foto: Herton Escobar/Estadão

“A gente tem de aprender a falar com a sociedade”, cobrou a bióloga e divulgadora de ciência Natalia Pasternak, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. “Para a população, é muito claro que as prioridades são saúde e educação. Mas ninguém explicou para ela que não existe saúde e educação sem ciência. Quem tem que dizer isso somos nós.”

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

“Não há mais esperança de convencer os políticos da justeza de nossas atividades. Eu cansei”, desabafou Walter Colli. “Temos que voltar nossas associações ao trabalho diuturno de explicar para a população que a ciência é fundamental para o seu futuro; que a comida que eles comem está cheia de ciência, que as vacinas que tomam são ciência; que até o Viagra que os políticos tomam tem ciência”, continuou Colli, arrancando risos da plateia. “Que a cura cada vez mais rápida de doenças vem da ciência; que os antibióticos só existem por causa da ciência. Que a ciência e a educação andam de mãos dadas; que é impossível construir um país sem ciência e sem educação.”

“Não é por acaso que São Paulo é o Estado mais rico do Brasil; é por causa de ciência”, disse, também, o biólogo Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), ressaltando a importância da pesquisa científica para o desenvolvimento econômico e social.