'Era lúcido e claro como uma lâmpada'

Lévi-Strauss tinha um intelecto de exceção e, nem por isso, desprezava seus pares, respeitando pesquisadores

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Por Andrei Netto e de O Estado de S. Paulo
Atualização:

Às vésperas de seu 101° aniversário, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss não era mais figura fácil nas imediações de sua casa, no 16° distrito de Paris, nem nos corredores do metrô da capital francesa. Tampouco era visto no Collège de France, a instituição fetiche da alta cultura do país, onde foi professor na disciplina de Antropologia Social, nem nas páginas de jornais e programas de TV. Às vésperas de sua morte, o acadêmico era um homem recluso. Mas este comportamento não significava que seu intelecto de exceção não continuasse ativo.

 

 

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“Lévi-Strauss se mostrava incrivelmente lúcido em seus últimos anos. Era claro como uma lâmpada”, conta o brasileiro Marcelo Fortaleza Flores, uma testemunha especial. Cineasta e doutor em Antropologia, Flores, então morador de Nova York, correspondeu-se por correio com Lévi-Strauss por 16 anos, até se transferir para Paris, em 2005. No ano seguinte, a relação de confiança mútua resultou em um projeto comum: uma série de entrevistas realizada no Collège de France.

 

Parte deste material pode ser conferido no documentário Trópico da Saudade, Claude Lévi-Strauss e a Amazônia (Claude Lévi-Strauss, Auprès de l’Amazonie), a ser exibido na TV-Cultura ainda este ano, e exibido na França em 2008 em homenagem aos 100 anos do nascimento do pensador. O filme mescla depoimentos atuais de Lévi-Strauss e passagens do clássico Tristes Trópicos para descrever as impressões do acadêmico sobre suas expedições pelo Brasil profundo, em especial durante seus seis meses de trabalho de campo entre os índios Nambikwara, no norte do Mato Grosso e em Rondônia, em 1938.

 

O privilégio do convívio com um dos intelectuais mais respeitados do século 20 foi concedido a Flores porque, como antropólogo, o brasileiro viveu cinco anos e meio, entre os anos 80 e 90, junto à tribo analisada por Lévi-Strauss. O trabalho serviu de base para uma dissertação de mestrado, defendida nos anos 80 nos Estados Unidos. Enviado ao acadêmico francês, o texto capturou-lhe o interesse. “Em duas semanas, ele me respondeu com uma carta, razoavelmente longa, deixando claro que havia lido até as notas de roda-pé”, lembra-se Flores.

 

A seguir, a síntese de duas entrevistas com o cineasta e antropólogo brasileiro, concedidas ao Estado em Paris, sobre a relevância da obra de Lévi-Strauss. 

 

Você fez um documentário não sobre Lévi-Strauss, mas sobre sua relação com os índios no Brasil. Por quê?

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Quando propus a idéia do documentário a Lévi-Strauss em 2005, ele me disse que, se eu desejava fazer um filme biográfico sobre sua vida, ele não teria interesse. Lévi-Strauss era uma pessoa humilde e muito resguardada sobre sua vida de família. Então eu disse: “Meu interesse não é este, é fazer um filme que traga novamente os Nambikwara à atenção pública, que valorize sua cultura”. Os Namikwara foram índios estudados pelos antropólogos mais conhecidos do mundo. No entanto, como muitos outros índios no Brasil, estão esquecidos. O interesse que temos sobre eles é o fato de serem representantes de outra civilização, exótica, que muito ainda chamam de “primitiva”. Na medida em que eles entram em contato com a sociedade brasileira, passam ao esquecimento, passam a ser vistos como um problema para as economias regionais e um “impedimento para o progresso”, já que “têm muita terra” – um argumento ao qual sou absolutamente contrário.

Lévi-Strauss respondeu que ficava contente em encontrar alguém com energia para este projeto e que ficaria satisfeito se seu nome e sua notoriedade como antropólogo fossem usados para que os Nambikwara viessem à tona. Tão logo concordamos, ele me concedeu uma série de entrevistas. Foram ao todo cerca de duas horas e 45 minutos de gravações, feitas em vários encontros, porque ele se mostrava cansado com facilidade. À época, já estava com 97 anos, embora estivesse muito lúcido.

Recebi um voto de confiança, que segui a risca e com muito custo. Os meus produtores franceses da 13 Production, como Paul Saadoun, concordaram com a proposta. Trouxéssemos à tona a situação do Brasil e dos Nambikwara por meio do trabalho de Lévi-Strauss. Por isso usamos a narrativa de Tristes Trópicos.

 

Nas entrevistas, vocês se concentraram sobre o Brasil e os indígenas ou avançaram sobre sua obra?

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Eu não tinha essa ambição porque existem entrevistas com Lévi-Strauss que trataram muito bem de sua obra. Nem era o que ele queria. Nos concentramos nas memórias da vida no Brasil, começando por sua chegada a São Paulo, sua relação com Mário de Andrade, seu cotidiano, as expedições que fez, os contatos com as populações indígenas, as pequenas viagens – como a ida ao Paraná, onde ele encontrou os Caingangues, outra a Goiás, onde encontrou os Carajás. Também falamos de suas expedições etnográficas entre os Bororo, em 1936, quando ainda não era reconhecido como etnógrafo. Essas últimas viagens permitiram que ele retornasse à França, expusesse no Museu de l’Homme e fosse, enfim, reconhecido como etnógrafo. Essa exposição lhe permitiu obter dinheiro para retornar e, seguindo na Universidade de São Paulo (USP), realizar a expedição de 1938.

 

Que peso tem a expedição de 1938 na sua trajetória?

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A expedição de 1938 é o trabalho que ele pôde programar desde o início. Ela reflete todo o seu interesse pelo Brasil e pela questão indígena. Lévi-Strauss começou pelos Nambikwara, mas foi além, visitando também os Mondé, um grupo misterioso. Talvez tenhamos, ao reencontrar este grupo, redescoberto o que ele viu, ainda que só restem seis membros sobreviventes doe um massacre que sofreram em 1985.

Lévi-Strauss terminou a expedição de 38 porque não tinha mais dinheiro e não tinha mais tempo. Desde sua chegada ele percebeu ter encontrado nos Nambikwara um povo indígena em uma situação muito especial. Eles não estavam integrados à região, como os Kadiweu estavam em 1936. Também não eram tão complexos como os Bororo, cuja sociedade é marcada por classes sociais, clãs, linhagens, papéis rituais. Os Nambikwara eram isolados, tradicionais, com uma cultura fluida, difícil de ter a que se ater. Eles cultivavam a performance ritual, como os Bororo, mas eram uma cultura intrigante. Lévi-Strauss via neles uma espécie de recomeço social – não uma sociedade de origem, mas uma espécie de retomada dos primórdios das relações sociais.

 

Lévi-Strauss estabeleceu, nas suas entrevistas, relações entre os povos indígenas e as origens da sociedade brasileira?

Não, ele não criou essas relações.

 

Ele se mostrava mais apaixonado pelo Brasil urbano, por São Paulo e Rio, ou pelas sociedades indígenas?

Sua grande paixão foram as sociedades indígenas e, em especial, os Nambikwara. Lévi-Strauss gostou de São Paulo, descrita por ele como uma cidade agradável nos anos 30. Ele também relata com carinho seu convívio com Mário de Andrade, que lhe pôs em contato com o folclore brasileiro. Mas desde o início vi que seu fascínio era pelos Nambikwara. E quanto mais me aprofundei no seu trabalho, vi o quanto os Nambikwara haviam sido importantes na formação de seu pensamento, para seu trabalho filosófico e antropológico.

 

Ele comentava abertamente essa influência?

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Não, ela ficou subentendida para uns e inexplorada para a maioria. Lévi-Strauss era muito humilde sobre seu trabalho etnográfico por saber que seus seis meses de trabalho de campo não eram suficientes, por exemplo, para aprender uma língua indígena. Ele nunca procurou validar suas teorias com os dados obtidos em campo no Brasil. Por outro lado, o trabalho que ele fez entre os índios brasileiros perpassa toda a sua obra. Ele escreveu sua tese de 1948, depois Tristes Trópicos, que aborda sua relação com o Brasil, interpretou o trabalho de outros antropólogos e construiu sua teoria sobre uma leitura muito profunda dos Ameríndios, da Argentina ao Canadá. Ele também recuperou muitos dos elementos colhidos no Brasil quando se lançou ao estudo da mitologia, por exemplo. Esta influência voltou a aparecer nos dois livros Antropologia Estrutural. Seu trabalho no Brasil também serviu para posicionar o método Estruturalista, que ele desenvolveu a partir da obra de Jacobson. A forma como ele aplica seu método parece muito vinculado ao seu período com os índios.

 

No entanto, a etnografia feita por Lévi-Strauss é bastante criticada entre antropólogos. Você, por outro lado, a defende. Por quê?

Eu tive a sorte de permanecer quatro anos entre os índios Nambikwara, bem mais tempo que Lévi-Strauss, além de ter vivido um certo engajamento político em relação à defesa de seus interesses – algo típico da antropologia à brasileira. O que Lévi-Strauss escreveu a respeito da sociedade Nambikwara, salvas pequenas reservas, é muito significativo, sobretudo sobre o papel do líder. As questões do mundo espiritual e do individualismo – não o nosso, mas um individualismo centrado sobre a expressão individual – também são muito bem abordadas. As relações entre grupos, as trocas, a questão do nome do indivíduo – o nome pessoal dos Nambikwara é secreto –, tudo é muito elaborado, com um olhar muito afinado. Além disso, ele foi um grande intérprete de outros antropólogos.

 

Como ele via essa “Antropologia à brasileira” que você menciona?

Ele a via muito bem. Lévi-Strauss considerava que a Antropologia que ele pensou é mais fecunda no Brasil. Uma grande antropóloga francesa, Anne-Christine Taylor, costuma dizer que Lévi-Strauss transformou-se para os antropólogos “no ar que se respira”. Mas são poucos os que se dizem continuadores de seu trabalho, até porque houve outros grandes antropólogos na França, de outras correntes, e que influenciaram muito a Antropologia local.

No Brasil, principalmente no Museu Nacional, e em trabalhos de pessoas como Eduardo Viveiros de Castro, há grandes continuadores do Estruturalismo e da obra de Lévi-Strauss. Ele nos respeitava muito. Em uma das entrevistas, ele diz que o trabalho de campo dos antropólogos brasileiros é excelente. A etnologia das “sociedades outras” continua a ser feita da forma como ele a pensou.

 

Qual é a importância de Lévi-Strauss para cenário intelectual hoje?

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Ele foi um dos grandes pensadores do século 20. Em termos de Antropologia, seu trabalho é decisivo. Muitas disciplinas se alimentam do que ele desenvolveu. Lévi-Strauss foi apropriado por autores muito relevantes. Lacan é muito claro sobre a importância dele em sua obra. Os que desenvolveram o Estruturalismo Literário, como Barthes, vieram a ser influenciados. Embora fosse um filósofo de origem, Lévi-Strauss sempre frisou sua condição de antropólogo. Mas o que se vê ao mergulhar em sua obra é uma forma de pensar que pode contribuir para a Filosofia, e renová-la. Lévi-Strauss difere de muitas correntes de pensamento da Filosofia do século 20. Ele não pertence à Fenomenologia, ao Existencialismo, à Hermenêutica – principalmente à Hermenêutica norte-americana. O seu trabalho é uma vertente que toma outro caminho, baseado na inspiração da Antropologia de Franz Boas e de Marcel Mauss, que foi seu professor. Ele também reconhece muito a força de Roman Jakobson. Por outro lado, ele se afasta da obra de Durkheim.

  

Lévi-Strauss chegou a comentar sua rebelião contra a Sociologia de Drukheim, sua influência na Antropologia Culturalista ou o “olhar de estranhamento” que ele trouxe para a Ciência?

Não, ele já havia falado sobre esses temas em outras entrevistas. Em uma das que me concedeu, Lévi-Strauss fala de sua passagem pelos Estados Unidos, muito frutífera em sua carreira. À época, a América era acolhedora dos grandes intelectuais. Ele diz dever muito à essa postura. Sendo de origem judia, Lévi-Strauss perdeu contato com sua família, sem saber se estavam vivos ou mortos após a II Guerra. Em Nova York, ele encontrou um grupo de antropólogos que formavam uma espécie de escola, a qual pertencia o alemão Franz Boas.

 

A sua passagem pelos Estados Unidos é crucial para sua obra, mas lá ele não é tão reconhecido. Por quê?

O Estruturalismo teve um impacto nos Estados Unidos, mas foi apropriado como uma forma de Antropologia Cognitiva. Este não era exatamente o método de Lévi-Strauss, que misturava uma inspiração estruturalista com uma interpretação culturalista das sociedades. Lévi-Strauss teve influência, mas nunca foi realmente assimilado nos Estados Unidos, embora haja antropólogos norte-americanos que se digam inspirados por ele, como na Escola de Chicago. Não é a mesma relação que tem o Brasil com a obra de Lévi-Strauss, onde ele é muito reconhecido, mesmo pelos que não praticam o Estruturalismo. Ele é um dos fundadores da etnologia brasileira. Digo isso com conhecimento de causa. Minha formação antropológica foi feita nos EUA e sempre senti que há uma certa barreira dos antropólogos brasileiros em relação àqueles que estudaram nos Estados Unidos.

 

Em uma de suas últimas entrevistas, Lévi-Strauss se mostrou muito pessimista, dizendo: “O mundo atual não é um mundo que eu amo”. Ele demonstrou esse pessimismo nas suas conversas?

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Este pensamento está ligado a sua concepção sobre o futuro da humanidade. Ele já abordava parcialmente o assunto em Tristes Trópicos, nos anos 50, ao mencionar o “trópico cheio”, no Paquistão, na Birmânia, na Ásia do Sul, e, em contrapartida, a relação privilegiada que os índios brasileiros tinham com a natureza e com o espaço muito mais amplo. Para ele, a superpopulação do planeta é um problema. E nesse sentido a humanização do ambiente e o grande respeito que os índios têm pelo ecossistema são exemplares. No espaço superpovoado, a competição gerada é determinante para a degradação das relações humanas, diz ele. Não sei se chamaria o que Lévi-Strauss sentia de pessimismo, mas de um “realismo sombrio” sobre a humanidade, uma visão crítica sobre a perda da relação harmoniosa e saudável do homem com o espaço. Por isso mostro, ao fim do documentário, a megalópole em que São Paulo se transformou – diferente da cidade que Lévi-Strauss conheceu nos anos 30. Por isso também procuro, por intermédio dos índios, “humanizar a Amazônia”, a natureza que devemos preservar. Os índios podem ser os grandes guardiões do espaço e do ambiente no Brasil. Talvez ainda tenhamos uma chance.

 

 

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