Mudança de personalidade pode ser um primeiro sinal de demência

Neuropsiquiatras e especialistas no Mal de Alzheimer propõem a criação de um novo diagnóstico, o do transtorno cognitivo leve, anterior ao moderado

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Por Pam Belluck
Atualização:

"A pessoa se tornou agitada, agressiva, irritável ou temperamental? Ele/ela tem crenças irreais sobre seu poder, riqueza ou habilidades?", pergunta o questionário.

Ou talvez outro tipo de mudança de personalidade tenha ocorrido: "Ele/ela já não se importa com alguma coisa?"

Mudanças bruscas de humor e comportamento podem preceder problemas de memória e de pensamento ocorridos na demência Foto: Stephen Savage/The New York Times

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Se a resposta for "sim" para uma dessas perguntas - ou outras em uma nova lista - e a mudança de personalidade ou de comportamento durou meses, isso pode indicar um primeiro estágio da demência, de acordo com um grupo de neuropsiquiatras e especialistas no Mal de Alzheimer.

Eles estão propondo a criação de um novo diagnóstico, o do transtorno cognitivo leve. A ideia é reconhecer e medir algo que alguns especialistas dizem ser frequentemente esquecido: as mudanças bruscas de humor e comportamento que podem preceder problemas de memória e de pensamento ocorridos na demência.

O grupo fez a proposta este mês na Conferência da Associação Internacional do Mal de Alzheimer, em Toronto, e apresentou uma lista de 34 perguntas que poderá um dia ser usada para identificar as pessoas com maior risco de desenvolver o Mal de Alzheimer.

"Acho que precisamos de algo assim", disse Nina Silverberg, diretora do programa do Centro do Mal de Alzheimer do Instituto Nacional do Envelhecimento, que não estava envolvido na criação da lista ou do novo diagnóstico proposto.

"A maioria das pessoas vê o Mal de Alzheimer principalmente como um distúrbio de memória, mas sabemos, através de anos de pesquisa, que também pode começar como uma questão comportamental."

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Segundo a proposta, o transtorno cognitivo leve (TCL) seria uma designação clínica anterior ao transtorno cognitivo moderado (TCM), diagnóstico criado há mais de uma década para descrever pessoas que passam por certos problemas cognitivos, mas que ainda podem realizar a maioria das funções diárias.

Para o Dr. Zahinoor Ismail, neuropsiquiatra da Universidade de Calgary e membro do grupo que propôs o novo diagnóstico, vários estudos e casos sugeriram que as alterações emocionais e comportamentais eram "um sintoma oculto", parte do processo de demência, e não separado dele.

"Qualquer que seja o fator que prejudique a memória e as habilidades de pensamento no processo de demência também pode afetar os sistemas de regulação emocional e autocontrole do cérebro", afirmou Ismail. "Se duas pessoas têm transtorno cognitivo leve, aquela com alterações de humor ou comportamento desenvolve a demência total mais rapidamente."

Os pacientes de Alzheimer com esses sintomas se saem muito pior ao longo do tempo; após a morte, autópsias mostraram que havia mais dano cerebral.

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Claro que nem todo mundo que passa por alterações de humor com a idade apresenta sinais de demência. Ismail enfatizou que, para ser considerado TCL, um sintoma deve ter durado pelo menos seis meses e ser não apenas um fenômeno temporário do comportamento, mas uma mudança fundamental.

Mesmo assim, alguns especialistas temem que a busca e o diagnóstico precoce de tal síndrome possam acabar categorizando um grande número de pessoas, deixando muitos preocupados com a probabilidade de desenvolver o Mal de Alzheimer, quando ainda não há tratamentos eficazes para a doença.

"Há o benefício inegável do diagnóstico precoce, que identifica as pessoas mais suscetíveis; por outro lado, há o diagnóstico exagerado, essa coisa de rotular a pessoa e levá-la a uma enxurrada de consultas, onde você começa fazendo o teste, o paciente faz mais exames de imagem do cérebro e fica cada vez mais preocupado", disse o Dr. Kenneth Langa, professor de Medicina Interna da Universidade de Michigan.

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"Se isso se tronar uma prática de rotina, o gasto pode ser altíssimo", acrescentou.

Langa, que escreveu sobre TCL, mencionou a experiência com essa designação. Muitos que recebem o diagnóstico não desenvolvem demência, mesmo uma década mais tarde, e cerca de 20% são considerados cognitivamente normais mais tarde. Isso talvez se deva ao fato de que, no dia em que foram examinadas, a função cognitiva dessas pessoas estava mais prejudicada do que o habitual, possivelmente como resultado de estresse ou medicamentos que tomavam para outras condições.

"Essa é uma das coisas que me faz pensar duas vezes sobre a criação do TCL", disse Langa, que recomendou que a lista de verificação fosse testada por pesquisadores antes que os médicos comecem a usá-la.

Outros estão mais entusiasmados.

"Temos de melhorar nossa capacidade de identificação do grupo de risco. No fim haverá um tratamento eficaz e, de qualquer forma, há muita coisa desconhecida sobre essa doença", disse Arthur Toga, neurocientista da Universidade do Sul da Califórnia.

Toga disse que sua mãe exibiu frustração e outras alterações emocionais depois dos 70 anos, muito tempo antes de desenvolver o Mal de Alzheimer. Ele acredita que as variações de humor tenham se originado no desânimo que ela, professora aposentada, sentia ao tentar esconder algo que outros familiares ainda não haviam percebido: a capacidade cognitiva cada vez menor com as palavras.

De fato, disseram Langa e outros, os testes de memória nem sempre são capazes de detectar problemas precoces porque algumas pessoas, especialmente as mais educadas, podem ser bastante hábeis com testes, e os resultados não refletiriam toda a extensão de seu comprometimento cognitivo.

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Placas amiloides no tecido cerebral de um doente que morreu de Alzheimer Foto: Laboratório Yankner/Universidade de Harvard

A Drª. Mary Ganguli, professora de Psiquiatria, Neurologia e Epidemiologia da Universidade de Pittsburgh, disse que as pessoas muitas vezes chegam contando que elas mesmas, ou um membro da família, haviam parado de fazer algo que sempre gostaram, como preparar um certo prato para o Dia de Ação de Graças ou cortar a grama na primavera.

"Até mesmo o paciente fica sem saber o porquê. Um dos motivos pelo desinteresse pela atividade pode estar no fato de não mais saber como praticá-la", disse a doutora. "Geralmente quando pergunto se o paciente está tendo dificuldade em se lembrar de coisas, ele diz que sim, mas que esse não é o maior problema. Só que se for avaliá-lo, certamente vou encontrar complicações de memória."

Alguns especialistas que apoiam o diagnóstico novo disseram que, ao contrário da maioria dos problemas cognitivos, alguns sintomas de humor e comportamento podem ser tratados com terapia e medicação. "Podemos fazê-los dormir melhor, tratar a depressão e ensinar a família a gerenciar os problemas", afirmou Mary.

Ismail disse que a apatia era um sintoma comum, mas viu mudanças mais gritantes - como a paciente de 70 e poucos anos que se tornou tão sexualmente desinibida que passou de puritana a promíscua. Outra, uma mulher de 67 anos, cumpridora da lei, de repente começou a fumar crack. Ambas desenvolveram demência mais tarde.

Alterações de humor e comportamento há muito foram reconhecidas como sinais de alerta prematuro de demência frontotemporal, que responde por cerca de 10% dos casos.

Palmer Posvar, paciente de Mary, estava com 50 e poucos anos quando começou a pegar comida do prato de outras pessoas, pedir dinheiro emprestado a amigos e tentar penhorar joias da família, como conta o marido, Wesley. Aos 54 anos, descobriu-se que ela sofria de demência frontotemporal. Agora com 64 anos, Palmer não fala e cai com tanta frequência que recentemente foi transferida de casa, em Fox Chapel, Pensilvânia, para um lar de idosos.

"Mesmo assim, o diagnóstico precoce é uma faca de dois gumes", disse Wesley Posvar quando perguntado sobre a criação da categoria de transtorno cognitivo leve. "O lado positivo é que existem medicamentos que ajudam a gerenciar o humor e o comportamento e os testes clínicos para os quais esses pacientes podem se qualificar, mas, se isso for incluído em seu registro de saúde, fica acessível às companhias de seguros ou empregadores."

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"E será que é isso que você quer realmente? Porque ainda não há cura."

Alguns especialistas disseram acreditar que os benefícios do novo diagnóstico superem as objeções.

"Não deveríamos ignorá-los, esperando que as manifestações cognitivas apareçam porque podemos estar perdendo uma oportunidade", disse Mary.

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