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Opinião|Quando você significa eu

Usamos o “você” genérico para normas e regras; e o “eu” para preferências e desejos

Atualização:

Outro dia, deitado no divã em uma seção de análise, descrevi meus sentimentos. “Quando sobe a raiva, você perde a capacidade de ser generoso.” Antes de terminar a frase, eu me dei conta de que tinha usado “você”, apesar de estar descrevendo um comportamento meu. Instintivamente repeti a frase. “Quando sobe a raiva, eu perco a capacidade de ser generoso.”

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Não me senti bem. Não era o que eu queria expressar. O que seria esse estranho “você” que havia usado falando de mim, e seguramente não me referindo a ele, meu analista, que era o único na sala? Como você sabe, o “você” normal é usado como nessa frase, para se referir ao interlocutor. Descobri que esse estranho “você” é o chamado “você” genérico e pode significar muitas coisas, entre elas “eu e toda a humanidade”. O que eu queria dizer era o seguinte: “Quando sobe a raiva, eu e toda a humanidade perdemos a capacidade de sermos generosos.” Ao usar o “você” genérico estava tentando me eximir um pouco da culpa.

Imagine qual não foi minha surpresa ao me deparar com um estudo que investiga exatamente em que condições as pessoas usam esse “você” genérico. O prazer é grande quando você (o prazer é meu, mas estou usando o “você “genérico para expressar minha esperança que você também tenha esse prazer) lê sobre algo que já observou. 

Os experimentos são muito simples. São desenhados para verificar o que a pessoa escolhe (“você” ou “eu”) em diversas situações. O primeiro experimento testa o que as pessoas usam no contexto de normas ou preferências. Mais de 200 pessoas foram divididas em grupos e submetidas a duas perguntas semelhantes. O primeiro grupo tinha de responder à pergunta: “O que você deve fazer com um martelo?” O segundo grupo: “O que você gostaria de fazer com martelo?”

O grupo que respondeu a primeira pergunta, em sua maioria, usou o “você” genérico em respostas do tipo “você deve tomar cuidado para não martelar o dedo”. Já no segundo grupo as respostas sempre usavam o “eu” em frases como “eu gostaria de pendurar um quadro”. Após repetir esse tipo de questão com diversas formulações, os cientistas concluíram que usamos o “você” genérico para expressar normas e regras e o “eu” para expressar preferências e desejos.

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Em outro experimento foi pedido às pessoas que descrevessem uma experiência autobiográfica negativa ou uma experiência autobiográfica neutra. A lógica por trás desse experimento é que as pessoas acreditam que experiências negativas são fonte de aprendizado, o que não ocorre com experiências neutras. O resultado é que em 56% das descrições de experiências negativas o “você” genérico foi usado, mas em somente 6% das descrições de eventos neutros ele aparece.

Finalmente as pessoas foram incitadas a relembrar uma experiência negativa. Metade do grupo deveria escrever sobre o que aprendeu a partir dessa vivência. A outra metade deveria escrever sobre o que sentiu durante essa vivência. Os que descreveram o que sentiram usaram preferencialmente o “eu”; os que escreveram sobre as lições aprendidas usaram o “você” genérico. 

Com base nesses e outros experimentos, os cientistas concluíram que o “você” genérico é utilizado nas diversas línguas para distanciar a pessoa de experiências individuais, permitindo que essas experiências se transformem em conhecimentos gerais aplicáveis ao restante do grupo ou em normas de comportamento. Ele seria um dos mecanismos linguísticos que utilizamos à medida que transformamos experiências vividas em conhecimentos e conceitos compartilhados. Ou seja, que nossa linguagem é estruturada para facilitar a transformação de experiências vividas em conhecimento. Uma conclusão no mínimo intrigante.

MAIS INFORMAÇÕES: HOW “YOU”MAKES MEANING. SCIENCE, VOL. 355, PÁG. 1.299. * É BIÓLOGO

Opinião por Fernando Reinach
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