Subnutrição e flora intestinal

'O estudo ficou mesmo interessante quando os cientistas coletaram amostras da flora intestinal de crianças saudáveis e subnutridas'

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Por Fernando Reinach
Atualização:

A subnutrição mata milhões de crianças e muitas vezes não pode ser curada simplesmente alimentando essas crianças. Crianças afetadas não revertem o quadro de retardo do crescimento mesmo quando alimentadas adequadamente, e os médicos não entendem a razão. Esse enigma foi decifrado por estudos feitos no Malawi, na África.

Nosso intestino é habitado por bilhões de seres vivos, representantes de milhares de espécies distintas de microrganismos. Nos últimos anos, ao caracterizar essa população, que chamamos carinhosamente de flora intestinal, os cientistas descobriram que ela varia de uma pessoa para outra, de um continente para outro, e ao longo da vida. Descobrimos também que esse conjunto de espécies afeta como processamos e absorvemos o alimento. 

Foi possível identificar três microrganismos que não estavam presentes nas crianças subnutridas Foto: Khaled Abdullah/Reuters

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Mas será que a flora intestinal é muito diferente em crianças normais e subnutridas? Para responder a essa pergunta os cientistas primeiro estudaram como evolui a flora intestinal de crianças saudáveis desde o nascimento (quando ainda não têm flora intestinal) até os 3 anos. O que eles observaram é que ao longo do tempo as crianças são colonizadas por centenas de microrganismos e a composição da flora vai mudando de maneira previsível. Conhecido o padrão normal, compararam a flora de crianças saudáveis e de subnutridas. Descobriram que as floras são diferentes, que crianças subnutridas desenvolviam mais lentamente sua flora intestinal.

O estudo ficou mesmo interessante quando os cientistas coletaram amostras da flora intestinal de crianças saudáveis e subnutridas (em linguagem direta: fezes) e usaram essas amostras para colonizar o intestino de camundongos de laboratório que não tinham flora intestinal (haviam sido criados em ambientes estéreis). Isso é feito depositando as fezes das crianças no intestino dos camundongos.

Após “transplantar” a flora humana para os camundongos, eles foram alimentados com uma dieta semelhante à consumida pelas crianças. O que os cientistas descobriram é que os camundongos que receberam as fezes de crianças subnutridas tinham um crescimento mais lento do que os que receberam fezes de crianças saudáveis. Isso apesar de ambos os grupos receberem a mesma alimentação. Esse resultado sugere que a flora de crianças subnutridas transmite a subnutrição para os camundongos.

No passo seguinte, os cientistas colocaram os dois grupos na mesma gaiola. Como camundongos são coprófagos (comem fezes), rapidamente a população de microrganismos dos dois grupos se igualou e os camundongos que estavam crescendo lentamente passaram a crescer rapidamente. Isso sugere que a flora intestinal dos camundongos que receberam a flora de crianças subnutridas é corrigida por algo presente nas fezes dos animais que receberam a flora de crianças saudáveis.

Usando técnicas de biologia molecular para comparar a flora dos subnutridos com a dos saudáveis, foi possível identificar três microrganismos que não estavam presentes nas crianças subnutridas. Eles foram isolados, crescidos em laboratório, e inoculados em camundongos juntamente com a flora das crianças subnutridas. Tiro e queda, agora esses camundongos passaram a crescer normalmente.

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Esse resultado demonstra que a flora intestinal determina se o camundongo vai se tornar subnutrido ou saudável. Além disso, demonstra que basta adicionar essas três cepas de microrganismos para corrigir a falha e curar os subnutridos. O passo seguinte vai ser adicionar essas cepas à flora de crianças subnutridas e ver se elas passam a crescer normalmente. Se esse experimento funcionar, a subnutrição vai se tornar mais simples de resolver. O que ainda não se sabe é se essas três cepas que faltam no intestino das crianças do Malawi são as mesmas que faltam em crianças de outras culturas.

De qualquer maneira, o resultado é impressionante. Aparentemente, você pode resolver parte do problema inoculando crianças com algumas cepas de microrganismos. Ou seja, basta fornecer um único pote de algo semelhante a um iogurte contendo as cepas necessárias. Cada vez fica mais claro que a flora que habita nossos intestinos não somente é importante, mas talvez deva ser considerada como um órgão, que fica doente e pode ser curado. Meu respeito pelas fezes humanas aumentou.

MAIS INFORMAÇÕES: GUT BACTERIA THAT PREVENT GROWTH IMPAIREMENTS TRANSMITTED BY MICROBIOTA FROM MALNOURISHED CHILDREN. SCIENCE VOL. 351 PAG. 854 2016

FERNANDO REINACH É BIÓLOGO

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