Herton Escobar
05 de junho de 2010 | 18h31
Imagine só: Já faz 4 mil anos que a acupuntura existe, mas ninguém até hoje conseguiu explicar cientificamente como é que enfiar agulhas no corpo pode aliviar a dor.
Que funciona, funciona. Não há dúvida. Os efeitos são comprovados clinicamente e referendados até mesmo pela Organização Mundial de Saúde. Como funciona, porém, ainda é um mistério para a medicina.
Não satisfeitos com a explicação mais “mística” de que as agulhas corrigem desvios no fluxo de energia dos chamados “meridianos” do organismo, investigadores científicos começam a desvendar esse mistério, molécula por molécula.
A pista mais recente foi publicada na última edição da revista Nature Neuroscience. Nela, pesquisadores do University of Rochester Medical Center, nos EUA, identificam a adenosina como uma molécula chave para o efeito analgésico da acupuntura.
A adenosina é um neurotransmissor que, entre outras coisas, modula a percepção de dor nos nervos periféricos. Os cientistas fizeram vários experimentos com camundongos e mostraram que os níveis de adenosina nos tecidos adjacentes ao ponto de inserção das agulhas aumentavam consideravelmente durante e logo após o tratamento.
Em camundongos geneticamente modificados para serem imunes ao efeito da adenosina, a acupuntura não surtiu efeito. Por outro lado, quando a adenosina era aplicada diretamente sobre um tecido inflamado, a dor diminuía mesmo sem a aplicação das agulhas.
Ou seja: o estímulo físico das agulhas desencadeia um efeito bioquímico no sistema nervoso, que funciona como um analgésico. É mais uma peça importante no quebra-cabeça científico da acupuntura, que ainda está longe de ser completado.
Sem entrar em controvérsias, os pesquisadores, na verdade, nem mencionam a questão dos meridianos no trabalho. Mas a Nature, no material divulgado à imprensa sobre o estudo, fez questão de notar que os resultados da pesquisa “não endossam, de maneira alguma, a ideia ancestral mística de que as agulhas funcionam pela correção de fluxos de energia por meridianos”.
Curioso como sempre, mandei o estudo para o professor Luiz Mello, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que estuda esse assunto, para saber a opinião dele. E ele me respondeu o seguinte:
“A mensagem de que devemos descartar meridianos e concepções filosóficas reflete uma visão estreita. O arcabouço conceitual filosófico existente não necessariamente tem que remeter a esoterismos sem base, mas pode servir de metáfora construtiva. Nenhum modelo reflete a realidade. Todos os modelos devem servir para criar novas perspectivas, devem abrir nossa visão do mundo. Os modelos históricos de acupuntura certamente têm esse valor.
Não tenho dúvida de que a lógica subjacente ao conceito de meridiano permitirá a caracterização de novas descobertas. Os achados descritos pelo artigo sugerem impactos e mecanismos locais. Não abordam aspectos remotos, sistemas neuronais a distância que certamente participam dos efeitos. Não abordam os demais sistemas e possíveis impactos que transcendem a dimensão analgésica.
De qualquer forma, acho que é um trabalho relevante e interessante. Sólido e confiável.”
É isso. O mistério continua!
Abraços a todos.
..
LEGENDA: No alto, ilustração da dinastia Ming mostra pontos de acupuntura. (Crédito: Takahiro Takano)
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.