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Sossego ameaçado: Cientistas seguem os passos de uma onça-pintada na Mata Atlântica

É apenas a segunda vez que um indivíduo da espécie é monitorado via satélite no bioma. Dados são essenciais para entender os hábitos alimentares, reprodutivos e territoriais desses grandes felinos, ameaçados de extinção

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Por Herton Escobar
Atualização:

A onça Sossego, com o colar de GPS usado para monitorar seus movimentos. Foto: Instituto Pró-Carnívoros/Divulgação

Passava das 22 horas quando um barulho chamou a atenção de Adenir e sua esposa. Ele abriu o aplicativo da câmera de segurança que havia instalado do lado de fora da casa há menos de um mês e ficou de olho na tela do celular, atento a qualquer atividade suspeita. Apareceu algo que ele jamais esperava: uma onça-pintada, passando debaixo de uma árvore, a poucos metros da sua porta (vídeo abaixo).

A maioria das pessoas ficaria apavorada; mas ele, não. "Fiquei muito contente de ela aparecer no meu sítio", conta o produtor de bananas, Adenir Torres Lima, de 49 anos. A intenção dele ao instalar a câmera não era se proteger de bandidos, mas justamente espiar os bichos selvagens que passavam pelo seu quintal, na zona rural de Juquiá, município do Vale do Ribeira, zona sul do Estado de São Paulo. "Era uma curiosidade minha que acabou dando certo."

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Ver uma onça-pintada na Mata Atlântica é um privilégio de extrema raridade. Cientistas estimam que haja menos de 200 onças-pintadas restantes no bioma, onde a espécie é considerada criticamente ameaçada de extinção. Assim, o registro da câmera do Adenir logo virou notícia, e a notícia acabou chegando aos ouvidos de uma equipe de pesquisadores do Instituto Pró-Carnívoros (IPC), que estuda os grandes felinos da região, com apoio do Legado das Águas - Reserva Votorantim e da Prefeitura de Juquiá.

Era junho de 2017, e já fazia três anos que os pesquisadores do IPC tentavam encontrar alguma onça-pintada dentro do Legado, que é uma enorme reserva de mata atlântica, praticamente vizinha ao sítio do Adenir. Sem sucesso. A reserva tem tudo que uma onça-pintada poderia querer: 31 mil hectares de mata preservada, protegida e cheia de comida (catetos, queixadas, antas e outros bichos que as pintadas gostam de caçar); mas, por algum motivo, ainda não há nenhum registro da espécie por ali. Até uma anta albina já foi fotografada no Legado; mas onça-pintada, nenhuma. É um mistério.

Intrigados, os pesquisadores foram até o sítio do Adenir e encontraram vários vestígios de onças e outros animais nas redondezas. Resolveram armar algumas armadilhas científicas (laços que prendem a pata do animal, sem machucá-lo) e voilà: poucos dias depois, tinham capturado não só uma, mas duas onças -- uma parda e outra, pintada. Puma concolor e Panthera onca, na nomenclatura científica. Juçara e Sossego, nas anotações dos cientistas.

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Ambas receberam colares de GPS e foram devolvidas à natureza rapidamente. E assim começou um trabalho inédito de monitoramento de onças por satélite na Mata Atlântica: o primeiro de uma onça-parda e o primeiro de uma onça-pintada macho (antes dele, houve apenas o monitoramento da fêmea Soneca, que desapareceu em 2014, conforme relatado no Capítulo 2 do especial multimídia Fauna Invisível).

A pintada é um jovem macho, com menos de dois anos e cerca de 50 kg, capturado na noite de 22 de setembro e liberado às 12h do dia seguinte (vídeo acima). Ele recebeu o nome de Sossego por causa da tranquilidade que exibiu durante todo o processo -- contrariando a má fama da onças-pintadas no imaginário popular, que costuma descrevê-las como animais sempre ferozes e agressivos.

Na verdade, dizem os pesquisadores, os seres humanos são uma ameaça muito maior às onças do que o contrário. Ainda mais nessa região desprotegida, por onde Sossego andou durante cinco meses, antes de entrar no Parque Estadual Carlos Botelho. Os dados do colar mostram que ele desceu por fragmentos de mata até a borda urbana de Juquiá, passando por entre sítios e cruzando estradas ao longo do caminho, antes de subir de novo para o norte e entrar na unidade de conservação, no início de março (mapa abaixo).

"O risco que ele correu foi altíssimo", diz a pesquisadora Sandra Cavalcanti, do IPC. Ela conta que ouvia tiros de caçadores todos os dias que entrava no mato para trabalhar, buscando rastros da onça. "Cheguei a ouvir sete tiros num único dia", conta. A cultura da caça é fortemente enraizada nas comunidades locais do Vale do Ribeira, cuja colonização remete à exploração de ouro nos séculos 17 e 18.

Essa pode ser uma das razões -- talvez a mais importante -- de não haver registros de onça-pintada no Legado das Águas. Os pesquisadores acreditam que essa zona de ocupação rural entre Carlos Botelho e a reserva esteja atuando como um "gargalo", dificultando a circulação de onças entre as unidades de conservação do Vale do Ribeira e da Serra do Mar, onde a população desses felinos é ainda mais escassa.

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Foi justamente por ali, na zona rural de Juquiá, não muito longe de onde os pesquisadores encontraram Sossego, que uma onça-pintada foi morta por caçadores e exibida como troféu nas redes sociais, em março de 2017. "Não tenho dúvida de que há mais onças sendo abatidas nessa região", afirma Sandra.

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Ela também está confiante de que há, sim, onças-pintadas circulando pelo Legado das Águas, ainda que sejam poucas e raras. (Aliás, é perfeitamente possível que Sossego estivesse saindo de lá quando foi capturado.) O problema é que a reserva parece estar cercada por uma "zona de guerra", cheia de trincheiras ocupadas por caçadores, palmiteiros, cercas, estradas e cachorros, que as onças precisam transpor para circular e se deslocar de uma região para outra. Com uma população total já reduzida a menos de 200 indivíduos, a conectividade entre essas poucas onças que restam é essencial para a sobrevivência da espécie na Mata Atlântica.

Sossego, felizmente, conseguiu passar e chegar ao parque Carlos Botelho (porta de entrada para várias outras áreas protegidas do Vale do Ribeira), mas nem todas as onças devem ter a mesma sorte.

"Precisamos entender quais são e onde estão esses sumidouros, para mitigar seus efeitos e fazer com que os corredores de fauna funcionem", diz Frineia Rezende, gerente executiva da Reservas Votorantim. "A caça existe, está na nossa cara e precisa ser combatida."

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Pesquisadores do IPC avaliam o estado de saúde e instalam o colar de GPS na onça Sossego, poucas horas depois de ela ter sido capturada. Foto: Instituto Pró-Carnívoros

Importância. Os dados de monitoramento por satélite são essenciais para entender como as onças-pintadas se deslocam por essa região, revelando também pistas sobre seus hábitos alimentares, reprodutivos e territoriais. Informações cruciais para a elaboração de estratégias efetivas de conservação da espécie.

Ao norte desse "grande vazio", como Sandra chama essa região desprotegida entre o Legado e Carlos Botelho, existe uma grande mancha de Mata Atlântica bem preservada, no interior do município de Tapiraí, que pode funcionar como um corredor florestal entre a reserva e o parque. São áreas particulares, sem nenhuma (ou pouquíssima) ocupação humana -- o que não significa, ainda assim, que sejam áreas totalmente seguras para as onças.

Imagem do Google Earth mostra uma grande mancha de mata preservada entre o Parque Estadual Carlos Botelho e a reserva Legado das Águas. Crédito: Herton Escobar/Estadão  

"Tem muito predador por aqui", diz Francisco Fogaça Balboni, o Chico, gerente da pousada e da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Parque do Zizo, que fica justamente no meio dessa grande mancha florestal. Ele se refere a caçadores e palmiteiros -- os predadores das onças. "Estou há muitos anos no mato e te digo que palmiteiro e caçador têm em qualquer lugar." Inclusive, diz ele, dentro das unidades de conservação do Estado.

Ele mantém uma "armadilha fotográfica" (câmera automática, acionada por movimento quando um animal passa na frente dela) no Parque do Zizo há cerca de seis anos; e nesse período todo fez apenas um registro de onça-pintada (vídeo abaixo). Alguns anos antes também apareceu uma pegada de pintada por ali, diz ele. E só.

Os cientistas não sabem dizer porque Sossego desceu para o sul, atravessando áreas muito mais degradadas até chegar ao perímetro urbano de Juquiá, em vez de seguir direto por esse corredor verde para chegar em Carlos Botelho; mas Sandra acredita que, por se tratar de um animal muito jovem, ele ainda esteja procurando um território para chamar de seu. Talvez ainda não saiba, por experiência, por onde deve ou não deve caminhar.

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Ao todo, entre o fim de setembro de 2017 e o início de março de 2018, Sossego andou mais de 200 quilômetros, dentro de uma área de 260 quilômetros quadrados. E o monitoramento continua.

A onça-parda, batizada de Juçara, em homenagem ao palmito símbolo da Mata Atlântica (também ameaçado de extinção), também está sendo monitorada desde 4 de setembro. Ela tem circulado por uma área menor, de aproximadamente 70 km2, entrando e saindo da borda norte do Legado das Águas.

Educação. Os pesquisadores e o Legado esperaram até agora para divulgar o trabalho por uma questão de segurança das onças (e deles mesmos no campo). Nesse meio tempo, foi feito um extenso trabalho de educação ambiental com as comunidades locais, em parceria com a Prefeitura de Juquiá, para explicar o projeto e ensiná-las sobre a importância da conservação das onças.

Adenir, por sua vez, pensa em trocar o nome do seu sítio de Barra do Braço para Recanto da Onça. Ele diz que a quantidade de tiros que se ouve na região diminuiu desde que os pesquisadores começam a trabalhar por lá. "Espero que seja por conscientização e não por medo", diz. Antes desempregado, ele agora trabalha com coleta de sementes no Legado das Águas, e diz que os dias que passou acompanhando os cientistas no campo para capturar as onças foram "as melhores férias da sua vida". "Sempre quis trabalhar com isso, mas nunca tinha tido oportunidade", conta. "Agora somos do time da conservação, com certeza."

A câmera do seu quintal continua ligada, na expectativa de que novas onças apareçam por ali.

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Texto atualizado às 19h30 do dia 3 de abril, com informações adicionais.

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