A água como objeto de disputas mundiais

Urbanização e usos conflitantes restringem a disponibilidade de água segura e suficiente para todos.

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Por Agencia Estado
Atualização:

O consumo mundial da água doce disponível dobrou nos últimos 50 anos e hoje corresponde à metade de todos os recursos hídricos acessíveis, quais sejam os rios, alagados, lagos, aqüíferos subterrâneos ou águas de degelo sazonal de primavera, nos países temperados. Explorar tais recursos foi o motor do desenvolvimento econômico de muitos países, sobretudo na agricultura, geração de energia, indústria e transporte. Porém, a crescente competição por água entre tais setores vem degradando as fontes naturais, das quais o mundo depende. O ciclo natural da água tem sido interrompido ou alterado em regiões muito artificializadas ? como as megacidades ? e os ecossistemas que garantem a quantidade e qualidade da água estão sendo suprimidos ou sob forte pressão. Cerca de 50% das espécies de ecossistemas aquáticos também estão em sério declínio, em todos os continentes, reforçando os indicadores de degradação ambiental. As mudanças climáticas ainda somam, a tal cenário, desastres cada vez mais freqüentes e violentos, como secas severas, inundações de larga escala e tempestades. Em resumo, segundo indicam dados da entidade ambientalista WWF internacional, ?o meio ambiente está enviando sinais de alerta que têm sido largamente ignorados até o presente momento?. Mesmo para quem não reconhece tal alerta, a expectativa em torno de uma crise mundial da água apóia-se em tendências claras, e, com freqüência, generalizadas, embora uma ou outra exceção se faça sentir, nos países ou regiões com maior disponibilidade de recursos hídricos. Dentre tais tendências, a crescente urbanização é o melhor exemplo de indicador. Existem 23 megacidades no mundo, com mais de 10 milhões de habitantes. Dezoito delas (São Paulo, inclusive) estão localizadas em países em desenvolvimento. De acordo com dados do Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Pnuma), a cada ano, somam-se 60 milhões de novos habitantes a estas megacidades, seja por migração ou crescimento vegetativo, acirrando as demandas por água e multiplicando os problemas decorrentes da superexploração, poluição ou má gestão dos recursos hídricos disponíveis. Até 2025, cerca de 5 bilhões de pessoas estarão vivendo em zonas urbanas, ainda de acordo com o Pnuma, atrelando qualquer solução para a crise da água à governabilidade das cidades. Mesmo sem chegar ao estágio das megacidades, a urbanização crescente agrava tanto os conflitos pela água como os impactos ambientais decorrentes das obras necessárias para abastecer as populações, cada vez mais concentradas. Metade das cidades européias já explora águas subterrâneas acima da capacidade de reposição natural. A Cidade do México está afundando, literalmente, devido à retirada excessiva de água do subsolo. Diversos países têm sérias dificuldades com a poluição de seus aqüíferos, em alguns casos, diretamente relacionada à superexploração ou redução da recarga, como em Bangladesh, onde os poços de água de 59 distritos contém altos níveis de arsênio. O arsênio é um elemento natural, que se torna disponível como poluente depois de reações químicas derivadas do rebaixamento do nível das águas subterrâneas. Ele está presente nas águas de 85% da área total de Bangladesh, com risco potencial para 75 milhões de habitantes, sendo que 1,2 milhão já apresentaram sinais de intoxicação. Guerras por recursos Outra tendência, que reforça o quadro de crise mundial da água, é a dos conflitos em regiões, onde dois ou mais países ? ou até duas ou mais etnias de um mesmo país - compartilham a água de rios ou aqüíferos subterrâneos comuns. Desde a fase de planejamento, o sistema de exploração do aqüífero do Nordeste do Saara, pela Líbia, gerou conflitos com os vizinhos Argélia e Tunísia. Embora estes países não estejam explorando o aqüífero, questionam o direito da Líbia retirar a água de todos para usufruto próprio. São igualmente conhecidas as disputas por água nas origens dos conflitos no Oriente Médio. E não faltam áreas diplomaticamente sensíveis, porque as águas dos rios transfronteiriços vem se tornando mais escassas ou poluídas, problema que atinge tanto a Europa do rio Danúbio como as nascentes do rio Orinoco, na Amazônia, por onde se espalha o mercúrio dos garimpeiros brasileiros. Além dos conflitos entre países ou povos, a desigualdade social também estabelece barreiras no acesso à água, separando ricos e pobres. São também as populações mais pobres as mais expostas a desastres relacionados à água, incluindo secas freqüentes, desertificação e inundações de larga escala. Em 2000, no 2o Fórum Mundial da Água, em Haia, na Holanda, representantes de 130 países concordaram em ?assegurar que a água doce, os recursos costeiros e ecossistemas associados à água sejam protegidos e recuperados; que o desenvolvimento sustentável e a estabilidade política devem ser promovidos; que qualquer pessoa deve ter acesso a água segura e suficiente a um custo compatível com manutenção de uma vida produtiva e saudável e que as populações vulneráveis devem ser protegidas dos riscos de desastres relacionados à água?. Três anos depois, neste 3o Fórum Mundial da Água, que agora se inicia no Japão, os desafios ainda são os mesmos e as desigualdades, maiores. Na média mundial de uso da água, o maior porcentual se destina à agricultura com 67%, seguida da indústria, com 19%. O uso municipal ou residencial fica com apenas 9%. E estes 9% são distribuídos de forma absolutamente desequilibrada entre pobres e ricos, com pelo menos 3 bilhões de pessoas obrigadas a servir-se de águas contaminadas, sobretudo por poluição biológica, derivada da descarga de esgotos domésticos diretamente nos rios, sem qualquer tratamento. Na maioria dos países em desenvolvimento, cerca de 90% dos esgotos são jogados in natura nos cursos d?água. O resultado, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, é que mais de 5 milhões de mortes anuais são ocasionadas por doenças de veiculação hídrica e pelo menos um quarto da humanidade permanece sem acesso à água segura e saneamento. Um total que pode chegar a 3,5 bilhões de pessoas ou metade da população mundial esperada, dentro de 20 anos. Conforme aponta o documento ?Living Waters? do WWF internacional, a criação de organizações e fóruns específicos, nos anos 90, para lidar com a crise da água responde à constatação de que ?a cooperação internacional em questões de água vinha se provando inadequada à tarefa de responder a desastres relacionados à água?. Porém, o acordo obtido no 2o Fórum Mundial da Água está longe de corrigir o problema. ?Ele falhou em reconhecer que é o investimento em um meio ambiente saudável que assegurará a provisão de suprimentos confiáveis de água limpa para todas as pessoas e para a natureza. Também falhou ao tratar a natureza como outro usuário competindo pela água (além dos setores energético, agrícola, industrial e de transportes)?. A expectativa em Kyoto - onde a representatividade do setor não governamental e de movimentos sociais é maior do que nos fóruns anteriores - é de sanar as falhas dos acordos anteriores e aumentar o peso da água na agenda política mundial, além de formular propostas mais concretas para diminuir as disparidades de acesso universal à água, segura e em quantidades suficientes para todos. Incluindo os ecossistemas.

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