
21 de abril de 2020 | 05h00
Desde o início da pandemia, a pressa e o pânico atrapalharam o andamento da ciência e atropelaram o bom senso. Metáforas bélicas despertam emoções e sufocam a razão, sugerindo que o rigor do método científico é “frescura” melhor reservada para tempos de “paz”.
Mas o que garante a segurança e a eficácia dos remédios e vacinas que tornam a civilização moderna possível é justamente esse rigor. O mundo tem acompanhado a proliferação de um número colossal de estudos incompletos, pequenos e mal desenhados, que tentam desesperadamente encontrar um medicamento eficaz contra a covid-19. A ansiedade é compreensível, mas o excesso de informação de má qualidade gera um ruído que mais atrapalha do que ajuda.
Estudo da Prevent com hidroxicloroquina é suspenso por ser feito sem aval de comitê de ética
A hidroxicloroquina (HCQ) é o exemplo clássico Essa molécula, que tem efeito antiviral em tubos de ensaio, já falhou em testes com animais e humanos para influenza, dengue, ebola, chikungunya e Sars, esta última causada por um vírus semelhante ao atual. Para ebola e chikungunya, aumentou a carga viral e a febre dos animais. A despeito dessa história de fracassos, um trabalho de péssima qualidade, publicado por um grupo francês, levou boa parte do mundo a depositar esperança na HCQ.
Se um único estudo de boa qualidade tivesse sido feito, já saberíamos se a HCQ funciona contra a covid-19. O problema é que o ruído foi tamanho que impediu isso. Uma vez que médicos e pacientes estejam tomados pela fé no remédio, como desenhar um estudo clínico? Quem aceitará ser colocado no grupo controle e ficar privado da “cura”?
Pior: a pressa e a urgência acabam sendo usadas como justificativa para todo tipo de oportunismo. O recente estudo publicado pela Prevent Senior não é um mero caso de relaxamento do rigor científico, mas envolve questões éticas graves que, felizmente, começam a ser investigadas pelas autoridades.
A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, Conep, suspendeu o estudo após identificar possíveis irregularidades, como o uso experimental do medicamento em pacientes com diagnóstico ou suspeita de covid antes do aval do órgão.
Se a metáfora é de guerra, vamos lá: médicos usam as armas da ciência para salvar vidas. O mínimo que os cientistas devem fazer é garantir que essas armas não atirem pela culatra.
* Pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP), presidente do Instituto Questão de Ciência e autora do livro Ciência no Cotidiano (Ed Contexto).
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