Astrônomos ligam eclipse de 1178 aC a eventos na Odisséia

Dados astronômicos do poema reforçam hipótese de que Ulisses matou os pretendentes em 16 de abril

PUBLICIDADE

Por Carlos Orsi
Atualização:

O poema épico Odisséia narra os dez anos que o herói grego Ulisses (ou Odisseu) passou em aventuras pelo Mediterrâneo, tentando retornar para sua terra natal, a ilha de Ítaca. Composta por volta de 800 a.C, a narrativa conta como Ulisses enganou o ciclope Polifemo, derrotou da bruxa Circe e escapou do canto das sereias, entre outras peripécias. Agora, dois astrônomos afirmam que o épico contém, ainda, o momento da reconquista, pelo herói, do palácio onde sua rainha, Penélope, o aguardava: 16 de abril de 1178, a.C, por volta do meio-dia. Essa informação não aparece explicitamente nos versos mas pode ser deduzida, dizem os cientistas, de dados astronômicos presentes no poema, uma das obras fundadoras da literatura ocidental. O ponto de partida dos pesquisadores, que descrevem sua hipótese na revista científica Proceedings of the National Academy os Sciences (PNAS), é um verso do vigésimo canto do poema, onde um vidente prevê um escurecimento do céu e a morte dos pretendentes que buscam conquistar Penélope. A idéia de que essa profecia poderia conter uma referência velada ao eclipse de abril de 1178 não é nova, reconhecem os autores do artigo, e existe há séculos. O que eles afirmam é ter encontrado diversas outras informações astronômicas no poema que dão à hipótese uma força até agora inédita. "Analisamos outras referências astronômicas no épico, sem presumir a existência de um eclipse, e procuramos datas que batam com os fenômenos astronômicos que, acreditamos, são descritos", diz o texto na PNAS. A conclusão a que os autores chegam, com base no movimento das constelações de Plêiades e Boieiro, e em deslocamentos do planeta Mercúrio - que seriam apresentados, no texto, como viagens do deus Hermes - é de que essas referências fornecem confirmação independente de que o dia do massacre dos pretendentes foi um dia de eclipse solar sobre as ilhas gregas. "Fizemos o melhor possível para não sermos seletivos nos dados que usamos", diz um dos autores, Marcelo Magnasco, da Universidade Rockfeller, em Nova York. "Não há outras referências abertas a fenômenos astronômicos no poema. Vasculhamos a Odisséia em busca de mais, e não há. Quanto a movimentos de deuses, só há quatro no primeiro plano da ação: Atena, que fica o tempo todo para lá e para cá; Zeus, que não sai do lugar e, então, Hermes e Poseidon". Deus dos mares, Poseidon, ou Netuno, só passou a ser uma referência astronômica com a descoberta do planeta que leva seu nome, em 1846. O principal problema com a hipótese, reconhecem os autores, é explicar como toda a informação astronômica supostamente codificada no poema teria sobrevivido ao longo dos quase 400 anos entre os eventos reais que teriam dado origem ao mito de Ulisses e a composição do épico. "Todas as possibilidades soam malucas", reconhece Magnasco, dizendo que é isso que torna o trabalho "tão interessante". "Se houvesse qualquer modo evidente dessa informação chegar, então não haveria tanta surpresa". O astrônomo diz ainda que a reação ao trabalho ligando os céus à Odisséia tem sido positiva, no geral, com uma exceção: "Todo o retorno que tivemos de historiadores especializados em Grécia foi extremamente negativo". As razões, segundo Magnasco, são o fato de não haver um canal claro para a informação astronômica precisa ter sobrevivido até a composição do poema, e a afirmação de que os gregos antigos não identificavam o planeta Mercúrio com o deus Hermes. "Mas Platão, em 400 a.C, refere-se a Mercúrio como a estrela sagrada de Hermes", defende-se. "As interpretações alegóricas antigas de que o verso se refere a um eclipse existem mesmo", diz o professor de língua e literatura grega da Universidade Federal de Minas Gerais, Jacyntho José Lins Brandão, afirmando que, embora não possa julgar a parte astronômica do trabalho, considera a hipótese como um todo "bem amarrada". "Se não é verdade, é bem contado", diz. "Do ponto de vista literário, embora se trate de um texto ficcional, a Odisséia está repleta de marcas de verossimilhança", explica, referindo-se à coerência interna do poema. "O conhecimento do movimento dos astros devia ser difundido para um povo agrícola e marítimo como os gregos, podendo, num poema de viagem marítima como a Odisséia, constituir, para eles, uma marca de verossimilhança mais forte do que para nós".

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.