Brasil pode virar "lixão" mundial de pneus

O cenário sombrio da última década - período em que 43 milhões de pneus usados e reformados entraram no País e se somaram a uma produção que não pára de crescer (46 milhões em 2002) - foi agravado por confusões e espertezas no fim do governo de Fernando Henrique Cardoso e piorou em fevereiro, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do Decreto 4.592/03, isentou de multa as importações de pneus remodelados do Mercosul

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Por Agencia Estado
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Com um passivo ambiental de 100 milhões de pneus usados, o Brasil corre um sério risco de se tornar o lixo preferencial dos países do primeiro mundo, que já não sabem onde colocar as sobras de uma produção anual de 900 milhões de peças. O cenário sombrio da última década - período em que 43 milhões de pneus usados e reformados entraram no País e se somaram a uma produção que não pára de crescer (46 milhões em 2002) - foi agravado por confusões e espertezas no fim do governo de Fernando Henrique Cardoso e piorou em fevereiro, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio do Decreto 4.592/03, isentou de multa as importações de pneus remodelados do Mercosul. O grande pesadelo dos ambientalistas é a transformação do Uruguai e do Paraguai em entrepostos para despejar no Brasil a carcaça pneumática dos países desenvolvidos. Com produção crescente, descarte constante e legislação ambiental rígida, os europeus não sabem o que fazer com seus pneus velhos. Um país continental e distante como o Brasil representa a solução ideal. Para os importadores, então, é um negócio sem paralelo, embora proibido desde 1991. Eles importam o produto por US$ 0,58, fazem a reforma a baixo custo e vendem os "seminovos" por até US$ 25. Com tanto lucro, esses grupos montaram um forte lobby no Congresso e armaram, desde 1990, uma verdadeira indústria de liminares para importar 28,9 milhões de pneus usados e 14,2 milhões de recauchutados. A perspectiva de abrir agora uma segunda porta, via Mercosul, provocou uma avalanche de protestos na área ambiental e dividiu o próprio governo. O procurador Antonio Herman Benjamin, membro do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo e professor de Direito Ambiental na Universidade do Texas (EUA), considera o decreto um desastre. "Não podemos nos transformar no lixão dos países industrializados nem fazer do Mercosul a carta de alforria para traficantes internacionais", protesta. "Estamos falando de produtos com impacto direto na saúde humana e cujos efeitos vão além das próximas gerações." No Congresso, as críticas uniram a oposição e parte da bancada governista. Há duas semanas, o deputado Rodrigo Maia (PFL-RJ) solicitou a anulação do decreto presidencial. "Estamos importando lixo", alega. Ele diz que o ministério do Meio Ambiente não foi ouvido, cita a proibição na Argentina (onde esse comércio é vetado) e tem a mesma desconfiança dos ambientalistas. "No final, acabaremos importando pneus velhos da Europa." A mesma sensação causou desconforto no ministério do Meio Ambiente e na própria base governista. Segundo um deputado petista, a ministra Marina Silva não era favorável ao decreto, e a Casa Civil deu parecer contrário, mas assim mesmo o documento foi assinado. Há 15 dias, uma comissão de quatro parlamentares petistas - Fernando Gabeira (RJ), Luciano Zica (SP), Dr. Rosinha (PR) e Mauro Passos (SC) - visitou o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, para questioná-lo sobre o assunto. Amorim ponderou que o governo apenas cumpriu uma determinação do Tribunal Arbitral do Mercosul. No início do ano passado, a corte condenou por 3 a 0 (com o voto do delegado brasileiro) a restrição do Brasil a essa importação. "Para quem aspira um papel de líder no Mercosul, questionar a decisão seria um tiro no pé, porque depois perderíamos legitimidade em causas que nos interessam", confirma um assessor do Itamaraty. Os deputados do PT não ficaram convencidos. Na quarta-feira passada, durante instalação da Comissão do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, Gabeira e Zica requisitaram a convocação de Amorim e da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, para explicar o decreto. "Gosto muito do Lula, mas nessas questões não tem acordo", diz Gabeira. "Essa importação traz prejuízos ambientais, causa desemprego e nos obriga a assumir um alto custo para reciclar um lixo que não produzimos." Também inconsolável, o deputado Zica defende a extinção imediata do decreto ou a criação de salvaguardas para a reciclagem desses pneus. "O decreto é inaceitável, porque no mínimo cria um precedente. Não dá para viabilizar o Mercosul pela banda podre da história", ressalta Zica. "O Congresso não vai aceitar essas condições." O presidente da Associação Nacional da Indústria de Pneumáticos (Anip), Gerardo Tommasini, também está preocupado. "Lula apenas acatou o que o tribunal determinou, mas o fato é que o Brasil tornou-se o maior importador de pneus usados e reformados do mundo", destaca Tommasini. Segundo ele, só no ano passado entraram no País 3 milhões de pneus já utilizados. "Dá quase 10 mil pneus por dia, o que significa uma fábrica nova, com 500 operários", compara. "O emprego foi gerado no exterior, os impostos foram pagos lá e as divisas também ficaram do outro lado. Aqui restou um pneu com pouco tempo de vida e o custo todo de sua reciclagem", constata. "Não vou me atrever a calcular quanto esses países gastariam para reciclar os 43 milhões de pneus que já nos mandaram." Para a diretora da Secretaria de Qualidade Ambiental do Ministério do Meio Ambiente, Marijane Vieira Lisboa, as críticas são válidas, mas o problema não foi criado pelo atual governo. A origem estaria no texto da portaria 258/99, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que obrigou "as empresas fabricantes e as importadoras" a reciclarem seus pneus gradualmente. Segundo ela, a importação do pneu usado sempre foi proibida, mas, ao não discriminá-lo no texto, a portaria abriu uma brecha. "Grupos inteligentes perceberam a chance e entraram com liminar, alegando que quem fabrica ou importa pneus estava dentro da lei." O Conama redigiu nova portaria, mas nesse meio tempo, a Casa Civil publicou o decreto 3919/01, estipulando uma multa de R$ 400,00 na importação de cada pneu usado ou reformado. "Como a importação do reformado (com a banda refeita) sempre foi permitida, o decreto criou uma anomalia: algo que não era proibido passou a ter multa", diz ela. Para consertar a situação, a diretora avisa que será preciso paciência e cautela. Ela adianta que na primeira reunião do Conama, em abril, o texto da portaria será alterado, mas com validade para janeiro de 2004. "Se colocarmos janeiro de 2003 poderemos ter nova enxurrada de liminares", observa Marijane. Mais tarde, cogita ela, poderia ser proibida a importação de qualquer pneu usado ou reformado. "Antes, vamos avaliar se impor custos ao importador não é mais efetivo do que proibir."

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