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Cana orgânica promove aumento da biodiversidade

Inventários de fauna, realizados em canaviais de Ribeirão Preto, demonstram que muitas espécies silvestres convivem bem com as culturas orgânicas

Por Agencia Estado
Atualização:

A opção pela cana-de-açúcar orgânica alterou radicalmente o cotidiano de sete fazendas e da Usina São Francisco, na região de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Entre 1986 e 1997, período em que os plantios tradicionais deram lugar a 100% de cana orgânica, todos tiveram que se adaptar a funções ?estranhas? e conceitos novos. Para o manejo integrado de pragas, por exemplo, foram formadas equipes de monitoramento de formigas, cupins, cigarrinhas e brocas. E só para observar, nada de extermínios. Para controlar nematóides, os venenos cederam lugar à rotação de culturas com crotalária, uma planta de nome tão esquisito quanto aqueles vermes das raízes. Para substituir as queimadas, não bastou mecanizar a colheita de cana crua: entraram em cena especialistas para discutir as formas de digestão da palhada, com o estímulo à microfauna e microflora detritívoras, isto é, animais, bactérias, fungos e plantas minúsculas, capazes de transformar a palha da cana em matéria orgânica. Para lidar com o solo vivo, passou-se a investir na alimentação das minhocas, hoje estimadas em 1 a 2 milhões por hectare, movimentando 500 toneladas de terra por ano, sem que ninguém veja, sem gastar o diesel dos tratores e garantindo um solo muito mais fértil, aerado e bem estruturado do que qualquer ação humana. O resultado, na ponta do lápis, é um aumento real de produtividade de 10%, em canaviais, que já estavam entre os mais produtivos do país. E a conquista de um nicho de mercado diferenciado, bem pago e garantido por uma certificação internacional. Hoje, são 22 mil toneladas de açúcar orgânico Native por ano, 90% dos quais exportados para 27 países dos 5 continentes. O custo de produção industrial é 50 a 60% maior, mas o retorno compensa. ?Nossos produtos orgânicos são financeira, ambiental e socialmente corretos?, enfatiza Leontino Balbo Júnior, diretor da Usina São Francisco e ?orquestrador? de toda esta transformação. Novos habitantes As mudanças profundas não se restringem, porém, apenas ao dia-a-dia dos funcionários. Aos poucos, diversos representantes da fauna silvestre também notaram a ausência de agrotóxicos, fertilizantes químicos e queimadas e foram se instalando entre os talhões de cana. Para eles, algumas áreas foram abandonadas e já apresentam um bom nível de regeneração natural; outras estão sendo ativamente reflorestadas com espécies nativas e existe até um pequeno corredor ecológico, de cerca de 70 metros, ligando uma mata vigorosa, de 50 hectares, a uma várzea, de 110 ha. Os antigos 5% das terras da usina, cobertos com vegetação natural, em 1986, agora constituem um mosaico de ecossistemas, em diferentes estágios de recuperação, totalizando 14% das terras. E desde abril deste ano, tanto o mosaico com 10 tipos de ecossistemas como as áreas de cultura, vem sendo monitorados por uma equipe de 8 pesquisadores, ligados à entidade ambientalista Ecoforça, à Embrapa Monitoramento por Satélite (CNPM) e às universidades de São Paulo (USP) e Mackenzie. Eles vão inventariar, qualificar e acompanhar os povoamentos e populações de fauna, durante um ano, de modo a contabilizar a biodiversidade local. ?Começamos pelas aves e mamíferos, verificando todo tipo de vestígio ? canto, ninhos, fezes, tocas, pegadas, carimbos (impressão de pegadas em troncos e galhos), restos de comida, pelotas de regurgitação (de corujas) ? e analisando 25 variáveis ecológicas, do meio físico e de comportamento da fauna?, explica José Roberto Miranda, da Embrapa. Apesar de terem iniciado pela pior época para observação de fauna ? o inverno ? e num ano particularmente seco, em 5 meses, os pesquisadores já contabilizaram 127 espécies de aves e 26 mamíferos, além de terem registrado várias espécies de serpentes e a surpreendente presença de caranguejos, vivendo nos canais de drenagem da Fazenda Barro Preto, construídos há 24 anos. Raros e até ameaçados Os levantamentos são feitos como uma espécie de varredura, com os pesquisadores andando em linha, distantes cerca de 100 metros um do outro, e parando de tempos em tempos para fazer observações de 20 minutos. ?Assim, se uma ave voa ou um animal se desloca e não dá para um pesquisador identificar, o outro pode ter visto melhor?, continua Miranda. São 300 pontos avaliados desta forma, um número que deve chegar a mil, até o fim da pesquisa. Assim que vierem as chuvas, serão feitos os estudos de anfíbios e répteis. ?E já estão chegando também as aves migratórias, sobretudo patos e marrecos, que têm escolhido as pequenas várzeas entre os canaviais, como área de pouso para descanso?. Entre as espécies inventariadas, figuram ouriços, mão pelada, cutia, furão, cachorro do mato, veado catingueiro, lobo-guará, macacos, bugios, tatus, gaviões, maçaricos, papagaios, seriema e tucanuçu. E existem até alguns animais raros e ameaçados de extinção, como tamanduá-bandeira e lontra. ?Há espécies, como o lobo-guará e o veado, que se abrigam e fazem trilhas dentro do canavial. Outras consomem a cana, como as capivaras, durante a fase inicial da cultura, e os macacos-prego, que tiram o caule, quebrando-o com seu peso, e levam a cana para a mata, para comer?, conta José Roberto Miranda. O possível dano à cultura, causado pela fauna, não é considerado, garante Leontino Balbo Júnior. ?Da mesma forma como deixamos as lagartas consumirem os talhões até um certo nível, porque sabemos que vai surgir um inimigo natural e reequilibrar a população, que fugiu ao controle e se transformou em praga, acreditamos no equilíbrio da fauna?, diz. ?Tivemos um exemplo disso, num talhão de cana próximo à várzea do rio Mogi-Guaçu, consumido por um grupo de capivaras: depois de alguns dias, no mesmo local, já apareceu uma sucuri?. Vale lembrar, que a sucuri é uma serpente de grande porte, que se alimenta de capivaras. Na verdade, em breve, a biodiversidade crescente do agroecossistema formado pela cana orgânica, várzeas e matas, poderá até gerar uma receita extra para a Usina São Francisco. Balbo Jr tem recebido visitas técnicas de conservacionistas e observadores de aves (birdwatchers), interessados em montar trilhas e pequenas torres de observação, para um projeto experimental de agroecoturismo. ?Ainda nos falta maturidade neste assunto, mas esperamos que um dos resultados dos levantamentos de biodiversidade seja a indicação dos melhores locais para observação de fauna?, admite. A usina já recebe anualmente cerca de 2 mil alunos, de escolas da região e até de São Paulo, num programa de educação ambiental, com o objetivo de promover a conscientização sobre a produção orgânica. Acrescentar ecoturistas ? estrangeiros inclusive - à lista de visitantes soa como uma boa ? e eventualmente lucrativa ? idéia.

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