Coerência e idealismo marcaram vida de d. Eugenio

Considerado conservador em comparação com a ala mais avançada do episcopado, d. Eugenio sempre foi sensível aos problemas sociais

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Por José Maria Mayrink
Atualização:

"O amor de Deus me faz ter pena das pessoas e buscar os meios para resolver seus problemas", disse o cardeal em 2005, lembrando como se preocupava com o sofrimento humano, desde o início de sua carreira. "Via o homem que sofria e o homem que se afastava de Deus, o que me levou pensar, ao mesmo tempo, no trabalho da salvação e da reestruturação da sociedade". Daí brotaram as raízes de seu ideal e de sua coerência, marca inconfundível de sua linha pastoral e política.

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Antes de ser nomeado bispo, aos 33 anos de idade, d. Eugenio foi diretor espiritual num seminário e capelão de presídio. Foi também professor de uma escola de serviço social da diocese. Questionava-se sobre o sentido de seu trabalho, quando discutia a situação miserável do povo com um grupo de colegas, "sempre com a preocupação de não separar o espiritual do temporal". Era um padre avançado.

"Será que a Igreja quer isso?", perguntava nas reuniões quando se levantavam idéias ousadas e malucas, naquela época anterior ao Concílio Ecumênico do papa João XXIII, que mudaria tudo. Uma delas era o projeto-piloto de reforma agrária de Barra do Punaú, em Vales Úmidos, onde construiu 50 casas numa área do governo estadual com recursos do Misereor, programa dos católicos alemães. "Tudo direitinho, com ajuda de agrônomos, metade das casas para brasileiros e a outra metade para japoneses."

Em seguida, veio o Movimento de Educação de Base (MEB), iniciativa pioneira, organizado depois de uma viagem à Colômbia, onde funcionava uma rede de escolas radiofônicas. Uma emissora da arquidiocese transmitia as aulas para as paróquias, onde professoras reuniam os alunos em volta de mesas e tamboretes. Os rádios eram de bateria, porque no sertão só havia luz de candeeiro. D. Eugenio contou com o apoio de d. Hélder Câmara, que estava fundando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

"Eu o chamava de Magro, ele me chamava de Patriarca", lembrou 40 anos depois o já então cardeal e arcebispo do Rio, para mostrar como se tratavam tão bem esses dois amigos de posições ideológicas bem diferentes, mas que na evangelização lutavam pelo mesmo objetivo. Para fazendeiros e latifundiários do Nordeste, d. Eugenio era comunista e subversivo em março de 1964, quando as Ligas Camponesas de Francisco Julião ameaçavam incendiar canaviais.

Não era o que pensava o general Antônio Carlos da Silva Muricy, comandante do Exército no Rio Grande do Norte. Num depoimento gravado em 1994 sobre o movimento militar, ele agradeceu o apoio recebido de d. Eugenio, que mobilizou seu pessoal, militantes católicos da universidade e do meio rural, para combater a agitação de Julião e de Leonel Brizola.

Dez anos depois, cardeal e general participariam da Comissão Bipartite na qual bispos e militares buscavam um entendimento entre a Igreja Católica e o governo no período mais difícil da ditadura. D. Eugenio, que preferia agir nos bastidores, lutava contra a arbitrariedade desde 1968, o ano do Ato Institucional nº 5, quando foi transferido de Natal para Salvador.

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Em protesto contra a prisão de um padre, numa época em que aumentavam as denúncias de torturas, proibiu a celebração de uma missa em ação de graças pela Revolução e se recusou a receber uma medalha do regime militar. Esses gestos não impediram, porém, que a Igreja tentasse o diálogo. No caso de d. Eugenio, o esforço começou antes, ainda com Castelo Branco, amigo de d. Hélder.

"Quando os jornais publicaram que Castelo Branco ia assumir o governo, eu recebi um telegrama de d. Hélder, comunicando que nós dois íamos ter uma conversa privada com ele", revelou mais tarde o cardeal. Foi uma conversa muito boa. "Se tivesse havido maior compreensão dos militares e também de algumas pessoas nossas no período de exceção, o regime não teria ficado tanto tempo no País", avaliaria mais tarde.

Transferido para o Rio, d. Eugenio foi recebido com hostilidade. Padres da arquidiocese, uns 600 signatários, divulgaram um abaixo-assinado contra sua posse. Ele não se abalou. "Essa é uma página virada, nem sei os nomes de muitos deles", declarou, quando uma repórter perguntou se puniria os rebeldes. Com fama de autoritário e centralizador, o cardeal era um homem atencioso e solidário.

Nos anos 70, d. Eugenio acolheu jurados de morte em sua casa e alugou 62 apartamentos, com aval da arquidiocese, para abrigar refugiados políticos, entre os quais ex-guerrilheiros argentinos, chilenos e uruguaios. Quando o primeiro deles bateu à sua porta, o cardeal mandou um assessor acolhê-lo por uma noite, enquanto rezava para decidir o que fazer. Prevaleceu a fé. "Pela lei dos homens, eu não posso receber refugiados em minha casa, mas pela lei de Deus eu devo".

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O cardeal interveio em 1979 num incidente criado pela invasão do consulado da Suécia, onde 30 militantes montoneros e tupamaros, respectivamente da Argentina e do Uruguai, buscaram refúgio. Os diplomatas suecos pediram sua mediação, quando o governo ameaçou resolver a questão pela força. D. Eugenio montou uma operação de guerra para salvar a vida dos ex-guerrilheiros e a de suas famílias. Organizou um comboio de 20 carros e os levou primeiro para sua residência no Sumaré e depois para o aeroporto do Galeão.

"Eu não sabia disso", admirou-se o cardeal d. Paulo Evaristo Arns, campeão da defesa dos direitos humanos em São Paulo, que só tomou conhecimento do fato quando d. Eugenio o lembrou numa entrevista, em maio de 2000. Diferentes na maneira de agir, tanto na política como na ação pastoral, os dois cardeais se tratavam com cordialidade. "Respeito muito d. Eugenio pelo trabalho que realizou em Natal e por sua coerência", disse d. Paulo.

Considerado conservador em comparação com a ala mais avançada do episcopado, d. Eugenio sempre foi sensível aos problemas sociais. "Foi ele quem puxou o movimento social da Igreja", testemunhou d. Waldir Calheiros, ex-bispo de Volta Redonda, que foi tachado de comunista e preso durante a ditadura. "D. Eugenio criou comunidades de base, as futuras CEBs, principalmente no meio rural, sem dimensão política, na mesma época em que Francisco Julião fundou as Ligas Camponesas", recordou d. Cândido Padin, ex-bispo de Lorena e de Bauru, falecido.

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Na Conferência Episcopal Latino-Americana de Medellín, aberta pelo papa Paulo VI em 1968, d. Eugenio alertou para o desafio que o continente significava para a Igreja. "Nós precisamos assumir as reivindicações de justiça na América Latina, pois o povo está sendo oprimido e muitos bispos não estão enxergando o casos que poderá ocorrer", aconselhou no plenário.

O cardeal do Rio não costumava falar em "opção preferencial pelos pobres", expressão cunhada em Medellín e encampada, em 1979, pela reunião de Puebla, com o aval de João Paulo II, mas seguia a orientação. "A opção preferencial pelos pobres se explica pela fé, não por motivo ideológico", diria d. Eugenio em 2005, depois de afirmar que "há uma Teologia da Libertação boa, que visa aprofundar a libertação do homem, mas outra de índole marxista".

Quando o Vaticano censurou frei Leonardo Boff, que em seguida abandonou o convento e o sacerdócio, correu a notícia de que fora d. Eugenio quem pedira sua cabeça. O cardeal negou essa versão, embora admitindo ter acompanhado a discussão em torno do livro 'Igreja, Carisma e Poder', quando o texto foi submetido à Comissão de Doutrina da Fé, de sua arquidiocese. O caso foi decidido em Roma, onde o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, depois papa Bento XVI, recebeu o teólogo brasileiro pra ouvir sua defesa, antes da punição.

No plano administrativo e pastoral, d. Eugenio fez uma revolução na arquidiocese do Rio, que dirigiu durante 30 anos. Criou mais de 60 paróquias e confiou 18 delas a freiras, repetindo uma experiência que havia dado certo em Natal. Uma de suas maiores preocupações foi formar padres numerosos e fiéis à orientação do papa. Ele mesmo servia de exemplo, era um modelo de ortodoxia e de fidelidade à Igreja.

D. Eugenio não fez o sucessor, pois o nome de d. Eusébio Scheid, nomeado em 2001, não constava da lista de seus candidatos. Respeitou, no entanto, a decisão e colaborou com o novo arcebispo enquanto pôde ser útil. Apesar de aposentado, continuou sendo um homem de muita influência. Falando na televisão ou escrevendo em jornais, sua palavra era sempre ouvida.

Era um cardeal de grande prestígio no Vaticano, mas daí a dizer que era um homem poderoso e capaz de ditar regras na Cúria Romana, observou ele, era exagero. D. Eugenio atribuía essa fama a pequenos gestos de gentileza. Dois exemplos: toda vez que ia a Roma, levava uma caixa de mamão papaia para João Paulo II e um quilo de café para um cardeal que usava cadeira de rodas.

Foi d. Eugenio quem celebrou uma das missas solenes nas exéquias de João Paulo II, em abril de 2005. Não participou do conclave, por ter mais de 80 anos, mas acompanhou de perto a eleição do novo papa. Quando se anunciou o nome do sucessor, vibrou com a escolha de Ratzinger. "Sou um homem feliz", declarou em entrevista ao Estado na residência de seu amigo e ex-bispo auxiliar, d. Karl Romer, a 50 metros da Praça de São Pedro, no Vaticano.

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Em novembro de 2010, d. Eugênio celebrou o aniversário de 90 anos na catedral do Rio, cercado de cardeais, bispos e padres. D. Orani João Tempesta, atual arcebispo, fez uma festa como ele queria: uma missa que não passasse de uma hora de duração, porque problemas circulatórios não lhe davam forças para ficar muito tempo em pé. Um mês depois, a saúde enfraqueceu mais ainda por causa de uma gripe. Os médicos receitaram repouso absoluto. D. Eugenio quase não falava mais e deixou de escrever o artigo semanal que publicava na imprensa. Os textos que continuaram a sair eram todos de arquivo.

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