De pai para filha, uma vida pelos besouros do Museu Nacional

Família de pesquisadores especializados em insetos ajudou a compor coleção de 5 milhões de itens no Museu Nacional do Rio

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Por Giovana Girardi
Atualização:
O entomologista Miguel Monné, em foto feita em abril deste ano, dentro do maior armário compactador da coleção de insetos que ficava no Museu Nacional, no Rio. Com44 fileiras e 10.500 gavetas entomológicas, guardava cerca de 3 milhões de exemplares ali Foto: Marcela Monné / Divulgação

No começo dos anos 1990, o pesquisador Miguel Monné cumpria uma agenda rigorosa aos fins de semana. Ele ia até a casa do amigo Carlos Alberto Seabra na praia do Flamengo e cuidadosamente transferia besouros, abelhas, gafanhotos e percevejos da coleção do médico apaixonado por insetos para caixas que seriam levadas para o Museu Nacional do Rio.

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O trabalho levou três anos seguidos, rendeu a Monné calos nas pontas do polegar e do dedo indicador – que ele gosta de mostrar lembrando a árdua tarefa de puxar e espetar os alfinetes com os cerca de 1,5 milhão de bichos – e foi o que deu impulso para que a coleção de entomologia do Museu Nacional viesse a se tornar uma das maiores da América Latina.

Atualmente com cerca de 5 milhões de exemplares, representava um quarto dos 20 milhões de itens abrigados no museu. A coleção estava em sua maior parte em dois armários compactadores dentro do palácio que sucumbiu com o incêndio no último domingo. Há pouca esperança de que alguma coisa tenha se salvado.

Talvez um pouco menos da metade da coleção era de besouros – cientificamente chamados de coleoptera, a especialidade de Monné – muitos coletados por ele. Agrônomo de formação, o pesquisador uruguaio, hoje com 80 anos, se especializou em zoologia e em taxonomia e ainda em sua terra natal iniciou suas coletas de insetos. Mas foi no Brasil, em especial no Museu Nacional, onde passou metade de sua vida, que ele fez carreira.

E herdeiros. Suas duas filhas se formaram em biologia, e a mais nova, Marcela, de 47 anos, é hoje curadora da coleção de coleoptera. Foi ela que conversou com o Estado sobre como a história do pai e de sua família se mistura à do museu e o impacto da perda do acervo para a ciência. Ainda muito abalado com o incêndio, Monné não está atendendo à imprensa, mas já pensa junto com Marcela em planos para continuar a fazer pesquisas.

“É um sentimento de luto, de tristeza profunda com um pouco de raiva. Não é só nosso local de trabalho. É um patrimônio do Brasil. Tínhamos o privilégio de estar lá todos os dias", conta Marcela.

“Ele me disse: ‘eu tenho 80 anos, minha preocupação é com a nova geração, com os jovens pesquisadores, professores, estudantes que tinham possibilidades incríveis de estudos nesse acervo e que agora tudo se perdeu”, afirma. “Ele sente muito pelo trabalho de vida, mas considera que não era algo dele, mas era para todos, para a ciência.”

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Tesouro

Foram nas pesquisas feitas com a ajuda da coleção, explica Marcela, que se descobriu, por exemplo, que cerca de 30% das espécies animais que existem no País são de besouros.

"A coleção tinha espécies ameaçadas de extinção e exemplares que o professor Monné e Seabra coletaram em locais que hoje estão devastados, não existem mais como matas. Tem cidade em cima. No museu tinha material coletado há 50 anos. É um registro biográfico, histórico único", diz a pesquisadora.

"Algumas espécies a gente até pode encontrar em outros locais, mas não mais naqueles. E esse tipo de informação é super importante, porque mostra como as espécies se distribuem pelo País", complementa.

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Outras, porém, podem ter se perdido para sempre. Muitos exemplares ali armazenados ainda não tinham nem sequer sido identificados. São espécies que ainda não foram descritas para a ciência. “Não só de besouros, mas também de outros grupos. Poderiam ser algumas milhares de novas espécies", estima Marcela.

A grande preocupação de pai e filha agora é conseguirem, junto com a comunidade científica do museu, se reerguer.

“O que precisamos é de um prédio próprio seguro, para poder continuar realizando nossas pesquisas. Esse sempre foi nosso grande problema: nunca conseguimos sair do palácio. Não deveríamos mais estar lá. Estou há 12 anos no museu e essa sempre foi uma preocupação, separar as coleções, como ocorre em todos os lugares. Elas precisam de lugar especial, não dá para ser um palácio de 200 anos com piso de madeira”, comenta.

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Pior que a guerra

“Os vertebrados conseguiram, a botânica também. Nós éramos os próximos da fila (para conseguir um novo prédio), o projeto já estava pronto. Não deu tempo", lamenta a também entomologista Cátia Mello Patiu, curadora geral da coleção de entomologia.

Para ela, talvez a pior perda seja dos pouco mais de 3 mil tipos que havia na coleção – exemplares nos quais as descrições de uma nova espécie são baseadas. “Acho que foi a maior perda de espécies-tipo da história. É insubstituível. Nem quando tivemos vários museus europeus bombardeados na guerra foi tão ruim. Aqui não conseguimos salvar nada.”

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