Edição de genes abre caminho para transplante de órgãos de porcos para humanos

Experimentos retiram vírus e tornam possível, a médio prazo, utilização por humanos de fígados, corações e outros órgãos de animais

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Por Gina Kolata
Atualização:
Bons resultados. Estimativa é de que os primeiros transplantes de órgãos para humanos possam ocorrer em dois anos Foto: eGenesis via The New York Times

Em um avanço nas pesquisas para transplantes de órgãos vindos de animais, cientistas norte-americanos criaram porcos com genes editados, livres de vírus que possam causar doenças a seres humanos. Os experimentos, publicados nesta quinta-feira, na revista Science, podem tornar possível o transplante de fígados, corações e outros órgãos de porcos para seres humanos, uma linha de pesquisa que estava praticamente estagnada.

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Se os órgãos suínos se mostrarem seguros e eficazes, “eles podem representar uma verdadeira virada de mesa”, disse David Klassen, diretor médico da organização privada que gerencia o sistema de transplantes americano. “Ajudaria a superar uma lacuna muito grande entre oferta e demanda”, afirmou. No ano passado, foram realizados 33.600 transplantes de órgãos nos Estados Unidos - e atualmente há 116.800 pacientes em listas de espera.

A nova pesquisa combina dois avanços dos últimos anos - edição de genes e clonagem -, segundo George Church, geneticista da Universidade de Harvard que liderou os experimentos. Usando a técnica Crispr, a equipe de Church eliminou o DNA viral dos genomas e estimulou células modificadas a se desenvolverem como embriões - posteriormente inseminados. Ao fim do processo, 15 filhotes permaneceram vivos. Nenhum deles tem o vírus que poderia ser nocivo a seres humanos.

Church estima que os primeiros transplantes de órgãos de porcos para humanos podem ocorrer dentro de dois anos. Para Klassen, porém, por tratar-se de um trabalho novo e com desenvolvimento imprevisível, podem ser necessários anos até que os transplantes de órgãos de porco sejam considerados suficientemente seguros para realização em grande escala.

Órgãos sob demanda. A ideia de usar porcos como fábricas de órgãos instiga pesquisadores há décadas. Órgãos suínos costumam ter o tamanho certo para o transplante para seres humanos e, em teoria, são semelhantes o bastante. Mas a perspectiva também levanta questões espinhosas sobre exploração e bem-estar animal. Atualmente, estima-se que 100 milhões de porcos são mortos nos Estados Unidos por ano somente para alimentação.

Cientistas da área argumentam que os poucos milhares de porcos que seriam cultivados para órgãos representariam uma pequena fração desse total, e eles seriam usados para salvar vidas humanas. Os animais acabariam “anestesiados e mortos ‘humanamente’”. Grupos religiosos relevantes já se manifestaram, geralmente concluindo que órgãos de porco são aceitáveis para salvar vidas, observa Jay Fishman, codiretor do programa de transplantes no Hospital Geral de Massachusetts, um dos maiores do país. As válvulas do coração do porco já são transplantadas rotineiramente para pacientes.

Retrovírus. A ideia de usar órgãos de porco em transplantes surgiu na década de 90. Em 1998, porém, uma equipe liderada por Fishman viu que, ocultos no DNA de suínos, havia genes de vírus semelhantes aos que causavam leucemia em macacos. Os cientistas notaram também que, ao cultivar células de porco ao lado de células de rim embrionárias humanas, esses vírus - conhecidos como retrovírus - se espalharam para as células humanas. Uma vez surgida a infecção, contaminavam outras células humanas.

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O receio de que órgãos de porco levassem à infecção de humanos por esse retrovírus foi o que levou à paralisação das pesquisas com suínos. A dimensão real da ameaça, porém, nunca ficou clara. 

Pacientes com diabete já recebem células de pâncreas de porco, dentro de um invólucro para que o sistema imunológico não as rejeite. E pacientes vítimas de queimaduras também já recebem enxertos de pele de porco. A inexistência de casos de infecção por retrovírus é outra razão para animar cientistas.

Uma nova era da ciência

Pesquisadores inauguraram na semana passada uma nova era da ciência e da bioética aplicada à reprodução humana, com a comprovação de que é possível corrigir falhas no DNA de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e, assim, impedir a transmissão de doenças genéticas. O estudo, feitos nos EUA, utilizou a técnica Crispr-Cas9 (ou Crisper) para editar o DNA de embriões humanos e corrigir uma mutação associada ao risco de falência cardíaca e morte súbita. Os embriões foram gerados por fertilização in vitro, usando células de doadores. A pesquisa levantou questões éticas sobre um possível uso eugênico da tecnologia, para a produção de bebês com características não relacionadas à cura de doenças.

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