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Opinião|Impressões fecais

De longe somos todos iguais, de perto completamente diferentes. Essa diferença é interior, temos pensamentos, memórias, opiniões e histórias diferentes. E também exterior, temos cabelos, orelhas e cores diferentes. Não é de se estranhar a obsessão humana em identificar os indivíduos de cada tribo, cidade ou país. Identificando características exteriores podemos associar um indivíduo físico à sua personalidade, desejos e outras características internas.

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Atualização:

Em nossos ancestrais provavelmente funcionava assim: Olha o Paulo, macho, agressivo. Da última vez ele me bateu, agora talvez queira roubar minha banana, melhor fugir. Olha a Paula, fêmea atrativa, talvez seja uma oportunidade... Até hoje operamos nossa vida dessa maneira: Toma o telefone do Paulo, é ele que opera o sistema de propina, talvez seja uma oportunidade de garantir um contrato. 

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Insetos sociais, como as formigas, não têm métodos para distinguir indivíduos. Somente identificam grupos de indivíduos. Mas em sociedades complexas, como a humana, a identificação de cada pessoa é essencial para o bom andamento das interações.

Primeiro sugiram os nomes. Depois incorporamos documentos com fotografias. Vieram os números associados à fotos e nomes, o que permitiu o uso da computação para identificar indivíduos. Foram descobertas as impressões digitais, únicas em cada indivíduo. Com o correio e o telefone surgiram os cartões de visita com as informações necessárias para contatarmos cada indivíduo. Nas redes sociais, a propagação da individualidade alcançou o planeta. Lá colocamos tudo o que desejamos divulgar, seja verdade ou não. Mas as novas tecnologias também caminharam em direção à precisão. São as imagens da íris, e o sequenciamento de DNA. Esse, além de permitir identificar o indivíduo, traz informações que permitem identificar seus pais, filhos e até netos e sobrinhos. 

Agora surgiu uma novidade. Foi demonstrado que a coleção de bactérias que habita o intestino de cada um de nós é única, o que permite o desenvolvimento das impressões fecais. Dada uma amostra de fezes é possível identificar o indivíduo que a produziu. 

Nosso intestino é habitado por um número enorme de espécies de microrganismos. Existem mais bactérias em nosso intestino que o total de células que compõem nosso corpo. Com o barateamento do sequenciamento de DNA se tornou factível caracterizar as milhares de espécies, cepas e variantes de microrganismos que vivem em nossas fezes. Esses estudos têm permitido aos cientistas descobrir associações entre a flora intestinal e doenças (Novo órgão envolvido no controle da obesidade, O Estado de S. Paulo, 7/9/2013). 

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Esse novo experimento utilizou os bancos públicos de microbiomas intestinais (sequências do DNA do intestino de um indivíduo). Muitas vezes, as fezes de uma mesma pessoa haviam sido coletadas e sequenciadas mais de uma vez e, portanto, incorporadas ao banco em diversas ocasiões. Além da doação inicial de fezes, as pessoas haviam doado novas amostras de 3 a 300 dias após a coleta original. Usando somente a sequência de DNA, os cientistas foram capazes de predizer, entre todas as amostras, quais pertenceriam a um mesmo indivíduo. Feita a predição, ela foi comparada com os dados que identificavam os indivíduos que doaram as fezes. Em 84% dos casos, as predições estavam corretas, mostrando que é possível identificar o dono de diferentes amostras de fezes mesmo que elas tenham sido coletadas quase um ano depois da amostra original.

Mas o mais interessante é que nos 16% restantes não existia nenhum falso positivo. Ou seja, o método identifica corretamente o dono das fezes ou não encontra o dono. O método nunca identifica erradamente uma amostra de fezes. Isso significa que, caso a identificação seja possível, a probabilidade de ela estar errada é muito baixa. Esse resultado demonstra que a flora intestinal de cada um é única e constitui mais um método de identificação.

Hoje, na cena do crime, a polícia colhe impressões digitais e analisa manchas de sangue e sêmen. No futuro, veremos valentes membros da polícia científica escarafunchando privadas e cestos de lixo à busca de impressões fecais. 

MAIS INFORMAÇÕES: IDENTIFYING PERSONAL MICROBIOMES USING METAGENOMIC CODES. WWW.PNAS.ORG./CGI/DOI/10.1073/PNAS.1423854112 2015

Opinião por Fernando Reinach
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