Malária recua, mas ainda mata no país

Casos de malária diminuem na Amazônia, depois do pico de 98/99. Mas o enchimento de lagos de hidrelétricas eleva a população do mosquito transmissor e o risco de novos focos, inclusive em São Paulo.

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Por Agencia Estado
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Responda rápido: qual é a doença transmitida por mosquitos que teve 389 mil casos no Brasil no ano passado e provocou 101 mortes? Não, não é a dengue: é a malária. Apesar de praticamente esquecida em boa parte do Brasil, a malária continua presente e é uma das doenças que mais mata no mundo. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, ocorreram cerca de 273 milhões de casos de malária no mundo em 2001, que causaram 1,09 milhão de mortes, individualmente ou em combinação com outras doenças. A maior parte das mortes é de crianças com menos de cinco anos. Mais de 40% da população mundial continua exposta à malária, que ocorre em 100 países, principalmente na África, Ásia e América Latina. A doença continua presente em boa parte do Brasil e o mosquito transmissor, o Anopheles, é encontrado em vastas áreas povoadas. Em abril deste ano, aconteceram quatro casos de malária em Parati (RJ), devido à presença de um turista argentino, que contraiu a doença na Venezuela. O exemplo mostra a fragilidade dos sistemas de prevenção: a simples presença de uma pessoa doente pode desencadear um surto de malária em qualquer região onde houver o mosquito transmissor. As grandes cidades brasileiras estão protegidas de epidemias pelas próprias características do mosquito transmissor, que é essencialmente selvagem. Mas a população de cidades menores e zonas rurais continua exposta a uma doença extremamente grave, assim como também acontece nas cidades grandes próximas a florestas, como as capitais da Amazônia. E o que é pior: alterações ambientais bastante comuns, como barragens, têm contribuído para o aumento das populações do mosquito transmissor e do risco de propagação da doença. Três tipos de malária Também conhecida no Brasil como maleita ou paludismo, a malária é provocada por um organismo de apenas uma célula, o Plasmodium ou plasmódio. No Brasil há três espécies de Plasmodium: P. vivax, P. malariae e P. falciparum, este último responsável pela forma mais grave da doença, que pode até causar a morte, devido ao bloqueio de vasos sangüíneos no cérebro ou por danos a outros órgãos vitais. Segundo dados do Ministério da Saúde, cerca de 20% dos casos de malária no Brasil são causados pelo P. falciparum. Não existe vacina para a malária e uma pessoa pode pegar a doença dezenas de vezes. O mosquito contamina-se ao picar um doente e então passa a transmitir a doença (só a fêmea pica). A contaminação também pode acontecer pelo uso de seringas infectadas, transfusão de sangue ou da mãe para o bebê, no momento do parto. Após a contaminação, os sintomas aparecem em 7 a 15 dias. Sem a vacina, esforços estão sendo feitos em outras direções para combater a doença. Uma equipe liderada pelo pesquisador brasileiro Marcelo Jacobs-Lorena criou, nos EUA, um mosquito geneticamente modificado, que não tem a capacidade de transmitir a doença: o parasita é impedido de sair do intestino do inseto e chegar às glândulas salivares, por onde se dá a infecção. A disseminação deste mosquito modificado em algumas regiões poderia diminuir sensivelmente o número de pessoas infectadas. Na África, por exemplo, pesquisas mostraram, que a transmissão da malária não depende apenas da quantidade de mosquitos transmissores e de pessoas infectadas. Há regiões com alto índice de doença, onde apenas 1% a 2% dos mosquitos são portadores do plasmódio, conforme conta Araripe Pacheco Dutra, pesquisador científico da Divisão de Orientação Técnica da Superintendência de Controle de Endemias (Sucen). Nessas regiões, os habitantes dormem desprotegidos e levam de 30 a 50 picadas por noite, elevando a possibilidade de infecção para quase 100% em uma noite. Evolução no Brasil Na década de 40, ocorriam cerca de 6 milhões de casos ao ano no Brasil, número que foi reduzido a 52 mil casos em 1970, graças a campanhas federais e estaduais de combate à doença. Mas o aumento de obras e da presença humana na Amazônia, em cidades, assentamentos e garimpos, fez com que a malária voltasse a crescer na região. Em 1980, houve 169 mil casos e em 1999 a doença atingiu um pico de 637 mil casos, dos quais mais de 99% na região amazônica, o que levou o Ministério da Saúde a implantar o Plano de Intensificação das Ações de Controle da Malária na Amazônia Legal (PIACM). O número estabilizou-se em 615.245 casos, em 2000 e caiu, em 2001, para 388.807 casos. Os dados da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) deste ano, até abril, indicam que o número de casos de malária caiu 14% em relação ao mesmo período do ano passado. Desde 1999, as ações de controle e o combate à doença estão sendo municipalizados, com repasse de verbas e treinamento dos agentes de saúde. Segundo José Lázaro Brito Ladislau, coordenador nacional do PIACM, a prioridade no momento é combater a malária urbana nas capitais Manaus (AM), Macapá (AP) e Porto Velho (RO), que apresentam um grande número de casos. As principais medidas para a prevenção da doença são: diagnóstico e tratamento precoces da doença, para que o paciente seja uma fonte de plasmódio pelo menor tempo possível, e borrifação de residências para combate ao mosquito. Com mais de 99% dos casos concentrados na Amazônia legal (Região Norte, mais Mato Grosso e oeste do Maranhão), a malária é considerada uma doença esporádica no resto do País (veja quadro). Hoje, o controle da doença no Estado de São Paulo é feito pela Superintendência de Controle de Endemias (Sucen), um órgão estadual. O grande número de pessoas doentes na Região Norte, entretanto, significa um risco constante de novos surtos, em qualquer área onde esteja presente o mosquito transmissor, explica Almério de Castro Gomes, chefe do departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Uma pessoa infectada, saída de uma região endêmica, pode se tornar origem de um foco em regiões onde os mosquitos estão "limpos", ou seja, não têm o plasmódio, parasita causador da doença. Basta o mosquito transmissor picar o doente para se contaminar e passar a transmitir a malária para outras pessoas. Assim um caso "importado" (de uma pessoa que pegou a doença em qualquer região que não seja sua moradia) pode gerar casos "autóctones" (de pessoas que foram infectadas por mosquitos no próprio local de moradia ou proximidades). Para controlar focos deste tipo, assim que um novo caso de malária é identificado, os moradores residentes num raio de 500 metros ao redor do lugar de ocorrência recebem acompanhamento médico por 30 dias, para verificar se não foram infectados. Dessa forma evita-se que a doença se espalhe e surjam mais casos autóctones. "Na Amazônia, os fluxos migratórios intensos, de garimpeiros, agricultores e outros trabalhadores, tornam o controle da malária muito mais difícil," explica Gomes. São grupos de pessoas que normalmente dormem desprotegidas, expostas, em pleno habitat do mosquito transmissor. Além disso, deslocam-se bastante, o que complica o tratamento da doença e o controle dos focos. Malária em São Paulo O último surto importante de malária no interior de São Paulo, segundo Dutra, da Sucen, aconteceu no início dos anos 90, em Araçatuba. "Foram 11 casos autóctones, ou seja, de pessoas infectadas no local," conta. "Uma fazenda recebeu um grupo de bóias-frias, vindo de Mato Grosso, e alguns deles estavam com malária. Como nessa região ainda restava um pouco de mata com mosquitos Anopheles darlingi, a doença foi transmitida para essas 11 pessoas. Depois disso, nunca mais houve um surto tão grande no Estado." Mas a malária não foi completamente eliminada de São Paulo. Permanece endêmica em toda a região da Mata Atlântica, ao longo do litoral do Estado, em cidades como Peruíbe, Iporanga, Itanhaém e Iguape. A maioria das ocorrências é causada pelo Plasmodium vivax. Há também casos provocados pelo P. malariae, quase sempre benignos e assintomáticos. Segundo Silvia Di Santi, coordenadora de pesquisa da Sucen, esses casos benignos de malária preocupam porque, embora não sejam graves, fazem com que a doença permaneça na região, de forma "oculta": os portadores não sabem que tiveram a doença e os exames de sangue nem sempre identificam esse plasmódio. "Em 2000, vimos um caso de morte em São Paulo por P. malariae", conta Silvia. Um paciente com câncer recebeu uma transfusão de sangue contaminado e desenvolveu a versão benigna da malária, mas veio a morrer por estar extremamente debilitado. Segundo a bióloga Ana Maria de Castro Duarte da Faculdade de Saúde Pública da USP, outra espécie existente em São Paulo é o Plasmodium simium, que pode infectar tanto seres humanos quanto macacos e muitas vezes é confundido com o P. vivax, espécie mais comum no Brasil. Nos anos 70, o biólogo Leônidas Deane estudou a população de bugios do Horto Florestal, em São Paulo, e descobriu que a metade dos macacos era portadora do P. simium, demonstrando que eles são um importante hospedeiro desse tipo de plasmódio, que eventualmente infecta o ser humano. Segundo a pesquisadora Maria Stela Branquinho da Sucen e da Faculdade de Saúde Pública da USP, os plasmódios simianos e as variantes do P. vivax necessitam ser melhor investigados. Risco em Porto Primavera Para José Maria Soares Barata, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, o que modifica o risco de ocorrência da malária é a ação humana. "Uma barragem, por exemplo, pode aumentar a população do mosquito transmissor, mas o próprio turismo ecológico também cria risco de disseminação da doença, porque um turista que volta para casa com malária pode gerar focos em regiões onde a doença está controlada há anos", diz. Em São Paulo, a usina hidrelétrica Sérgio Motta (também conhecida como Porto Primavera), no rio Paraná região oeste do estado, modificou recentemente a população de mosquitos transmissores. A construção do reservatório de 2.250 km2 propiciou o aumento da presença de criadouros dos mosquitos da região, entre eles o Anopheles darlingi, transmissor da malária. Segundo dados coletados pela Sucen, a população do A. darlingi caiu logo após o enchimento do reservatório da hidrelétrica, em março de 2001, mas já voltou a crescer. O número de mosquitos oscila conforme as estações do ano, porém, como a área coberta por água agora é muito maior que anteriormente, aumentou muito a probabilidade de crescimento da população de mosquitos anofelinos. Na região de Porto Primavera foram identificados apenas dois casos autóctones de malária, ao longo de cinco anos. "O próprio lago da barragem não costuma ser um criadouro", explica Rosa Maria Tubaki, pesquisadora científica da Sucen, "a questão principal são os afluentes, onde a elevação do nível da água cria novos remansos, propícios para os mosquitos." Segundo ela, o Anopheles se reproduz em água não-poluída, parada e à sombra. A Sucen tem feito monitoramento nos afluentes e matas próximas, e também na foz do Rio do Peixe, uma região de pastagens. "Os mosquitos em São Paulo estão limpos", diz Tubaki, "por isso é muito importante acompanhar os casos importados de malária, de turistas e imigrantes, para que não sejam origem de focos da doença." "Em outras barragens, como Itaipu, Tucuruí, Serra da Mesa, Balbina e Samuel, houve também esse aumento das populações de mosquitos vetores," explica Gomes. Ele relata que durante a construção e enchimento de Tucuruí, o governo tomou medidas rígidas de controle da circulação das pessoas, de modo que não houvesse hospedeiros humanos, que provocassem o surgimento de focos de malária. Já no Paraná, nas proximidades de Itaipu, a ocorrência de vários casos deve-se à vizinhança com o Paraguai, onde o governo não tem feito um controle adequado. Cuidados para quem vai viajar Quem faz turismo para regiões onde existe malária deve se precaver para não pegar a doença, presente de forma endêmica na Amazônia Legal, e em cerca de 100 países da América do Sul, América Central, África e Oceania. Conforme a médica Marise Oliveira Fonseca, coordenadora do Núcleo de Medicina do Viajante do Hospital Emílio Ribas, devem-se tomar os seguintes cuidados para evitar a malária: Evitar o horário em que o inseto se alimenta, desde o entardecer até o amanhecer. Usar sempre calças compridas e blusas de manga comprida, deixando o mínimo de pele exposta. Usar roupas claras (o Anopheles tem atração por cores escuras). Usar repelente e reaplicá-lo a cada quatro horas. Usar mosquiteiro para dormir. Se o destino é a África, o viajante deve consultar um Ambulatório dos Viajantes, que poderá recomendar mais medidas de prevenção. A malária é extremamente comum na região da floresta equatoriana da África, em países como Congo, Angola e Nigéria, e é da variedade mais grave, causada pelo Plasmodium falciparum. Os ambulatórios dos viajantes do Hospital das Clínicas e do Hospital Emílio Ribas estão preparados para reconhecer doenças incomuns em São Paulo, como a própria malária. Marise recomenda a quem volta de uma região onde há malária endêmica, que procure diagnóstico imediatamente, se tiver febre, associada a dor de cabeça, diarréia e calafrios. Ao doar sangue, esses viajantes também devem alertar o banco de sangue que estiveram em uma região de malária endêmica, pois nem todos os laboratórios fazem teste para identificar o plasmódio. Contatos: Ambulatório dos Viajantes do Hospital das Clinicas - telefones (11) 3069-6392 e 3081-8039 Ambulatório dos Viajantes do Hospital Emílio Ribas - telefones (11) 3064-1929 e 3896-1366 e e-mail: medviajante@emilioribas.sp.gov.br.

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