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Opinião|Números: propriedade

Eles passaram a fazer parte do universo de coisas da propriedade privada

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Atualização:

Uma palestra de Luigi Zingales, um professor da Universidade de Chicago, acendeu uma luz na minha cabeça. Algo que eu sabia renasceu com um novo significado, o enorme valor dos números como propriedade privada.

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A propriedade privada sempre acompanhou os seres humanos. Nas tribos de caçadores coletores, que vivem praticamente sem bens materiais, as flechas envenenadas pertencem a quem as produziu, é um bem privado. Com o passar dos milênios acrescentamos outras coisas à lista de bens privados, uma caverna, uma casa, um animal domesticado, um pedaço de terra. Hoje praticamente tudo que é composto por átomos pode pertencer a uma pessoa ou grupo de pessoas. O petróleo do pré-sal, ainda enterrado no fundo do mar, já pertence à Petrobrás, que em parte pertence a pessoas que são donas de suas ações. O Parque do Ibirapuera pertence aos paulistanos e não aos nova iorquinos.

No século 19, o conceito de propriedade privada deixou de se aplicar somente às coisas materiais. Ideias se transformaram em bens privados. As leis que regulamentam os direitos autorais e a propriedade intelectual regulam esse tipo de propriedade. Eu sou dono de um livro de crônicas do Veríssimo, mas a propriedade intelectual dessas crônicas pertence a ele. Para cada livro vendido Veríssimo recebe uns trocados. O mesmo ocorre com músicas, filmes e invenções. Foi um passo importante para a humanidade. Pessoas passaram a poder ser donas das ideias que criaram. Hoje praticamente todas as pessoas são donas de um bem material, mas somente algumas são donas de ideias.

Agora, sem que muitos percebessem, números passaram a ter valor e eles se transformaram em bens privados. Talvez você não tenha percebido, mas é dono de um bom número de números. O exemplo mais simples é seu CPF, um número que recebeu do governo e é seu por toda a vida. Ele vale dinheiro. Um CPF limpo garante crédito e um sujo pode atrapalhar a vida. 

Um caso interessante é o número do seu celular. Até pouco tempo atrás ele pertencia à companhia de telecomunicação. Se você fosse trocar de operadora teria de mudar de número. Com uma penada, o governo transferiu a propriedade desse número da operadora para você. Ele passou a ser sua propriedade privada, você pode migrar de operadora e levar ele junto.

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Outro exemplo menos conhecido é o dos dados médicos. Aquilo que seu médico ou hospital escreve em sua ficha. Pela lei esses dados pertencem a você, não ao médico ou hospital, mesmo que esteja guardado na gaveta do consultório. Isso facilita sua mudança de médico, hospital ou seguradora. Infelizmente poucos conhecem ou respeitam essa regra. E você não se beneficia dessa sua propriedade privada. Mas as companhias farmacêuticas, que têm acesso a esses dados, ganham com eles.

A propriedade e o uso de grande parte dos números e dados que circulam na economia digital não são devidamente regulamentadas. Por exemplo, seus dados no Facebook, são realmente seus? Você pode levar tudo para outra empresa? Já tentou? 

A cada ano o valor dos números e dados cresce, eles são usados para vender propaganda, mapear preferências e infinitas outras formas de ganhar dinheiro. Da mesma maneira que no passado as terras eram de quem tomasse posse primeiro, atualmente números e dados são de quem os coleta e usa primeiro. Pouco se discute, e praticamente não existem leis que regulamentam a propriedade, os direitos e deveres de quem gera, acumula e distribui esses dados. Enquanto eram poucos e não tinham valor isso não era um problema, mas o valor desse bem cresceu e a sociedade precisa decidir a quem eles legitimamente pertencem e quais os direitos de seus donos. 

Números passaram a fazer parte do universo de coisas que são passíveis de se transformar em propriedade privada. Estão passando pelo mesmo processo de valorização que as terras passaram no último milênio e as ideias passaram nos últimos séculos. 

Enquanto a propriedade de ideias e outros direitos autorais afeta uma pequena fração da humanidade, a propriedade de números e dados afeta todos nós. E isso é um problema com implicações maiores do que imaginamos.

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* É BIÓLOGO

Opinião por Fernando Reinach
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