Pesquisadores da USP preveem 1º teste de rim de porco para humano no Brasil nos próximos dois anos

Sucesso de experimento nos Estados Unidos estimula pesquisa brasileira semelhante. Método utiliza órgão suíno modificado geneticamente

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Foto do author Leon Ferrari
Por Leon Ferrari
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Nos Estados Unidos, pela primeira vez, um ser humano recebeu um rim de porco sem que uma rejeição imediata fosse desencadeada em seu sistema imune. O feito estimula uma pesquisa associada à Universidade de São Paulo (USP), com linha semelhante e comandada por Silvano Raia, pioneiro do transplante de fígado na América Latina. O cirurgião estima fazer os primeiros testes com seres humanos no País em dois anos, caso o estudo consiga investimento para construir um criadouro biosseguro (pig facility).

“Por mais que os dados de laboratório indicassem que estávamos no caminho certo, existiam os céticos. O fato de terem conseguido demonstra que essa linha de pesquisa é promissora”, avalia o cirurgião. Para a geneticista Mayana Zatz, também envolvida na pesquisa, o sucesso americano facilita a aprovação de experimentos por comitês de ética brasileiros. “É importante no sentido de mostrar: ‘Olha, já está sendo feito nos EUA’.”

Os pesquisadores Mayana Zatz, Lylyan Pimentel, Ernesto Goulart e Luiz Caires no laboratório de Genoma da USP Foto: Taba Benedicto/Estadão

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O estudo brasileiro, tocado no Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células Tronco da USP, onde se criou um laboratório de xenotransplante (transplante entre espécies diferentes), foi concebido por Raia há quatro anos. A iniciativa teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da farmacêutica EMS. A parte de engenharia genética, segundo os cientistas, consiste na inativação de genes do porco e na adição de genes humanos, feita com a técnica CRISPR/Cas9 (no método, a Cas9, enzima do sistema de defesa das bactérias, junto a um RNA, usado como guia, recorta o trecho de interesse de um DNA). Com isso, foi possível criar os embriões geneticamente modificados, que precisam ser introduzidos em uma matriz e criados no pig facility. 

Raia adianta que os primeiros filhotes serão gerados em um biotério comum, da Faculdade de Medicina da USP. A partir daí, testes pré-clínicos serão tocados em perfusão isolada, sistema que permite manter a preservação de órgãos desde a coleta do doador até o transplante. É empregado usualmente o chamado líquido de preservação (perfusato). A experiência usará, porém, sangue humano como perfusato. “Se a perfusão do rim geneticamente modificado com sangue humano, durante 12 horas, não demonstrar rejeição tanto nas biópsias do órgão quanto do perfusato, ficará demonstrado que nosso produto é adequado para ser transplantado em pacientes”, declara o cirurgião.

Com os ensaios clínicos, será possível também descobrir se o rim do porco será utilizado de forma permanente ou temporária, até que um órgão humano compatível esteja disponível, segundo Mayana. A geneticista diz que a pretensão é, no futuro, também transplantar com sucesso o coração, a pele e a córnea, por exemplo, do porco ao ser humano. 

POR QUE PORCOS?

Com a tendência de envelhecimento da população, as preocupações relacionadas a transplantes e a filas de espera aumentam. Até junho deste ano, 26.230 brasileiros estavam na fila de espera por um rim, segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO).

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Com isso, a comunidade científica, na última década, tem focado no que chama de “órgãos adicionais”, que não advêm de cadáveres ou voluntários. “Entre essas técnicas, a mais promissora é o xenotransplante (transplante entre duas espécies diferentes)”, afirma Raia. O de suínos, sobretudo, mostra-se mais adequado por três motivos. “Eles têm uma fisiologia digestiva e circulatória muito parecida com a nossa, têm um tempo de gestação mais curto e são prolíferos.”

O transplante de um porco comum, sem genes modificados, porém, cria uma rejeição hiperaguda do sistema imune humano, que ocorre minutos após o enxerto, seguida de uma trombose disseminada nos vasos do transplante e necrose do enxerto, exigindo o explante imediato.

RIM É MAIS VISADO POR PESQUISAS, PELA OPÇÃO DA HEMODIÁLISE

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No contexto dos xenotransplantes, o rim é sempre o primeiro órgão visado pelos pesquisadores. Isso ocorre pela possibilidade de manter o paciente em hemodiálise, caso algo dê errado. “Quando um paciente tem quadro de insuficiência renal irreversível, ele não morre, vai para a hemodiálise e sobrevive graças à máquina, ao ‘rim’ artificial”, diz Silvano Raia.

Ele conta que durante muito tempo, enquanto se estudava o xenotransplante suíno, plantou-se “uma justa preocupação” da possibilidade de contaminar o ser humano com vírus inofensivos aos porcos. Porém, os temores caíram por terra quando descoberta a possibilidade de inativá-los.