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Polarização política provocou aumento de mortes por covid-19, diz estudo

Trabalho avaliou países europeus, mas também remete ao que ocorre no Brasil. A diferença no excesso de mortes entre duas regiões, uma sem polarização das massas e outra com níveis máximos é mais de cinco vezes maior

Por Roberta Jansen
Atualização:

RIO - A polarização política aumenta a mortalidade pela covid-19. A conclusão está em um novo estudo científico que mostra, pela primeira vez, uma correlação direta entre o número de mortes pelo novo coronavírus e o recrudescimento do populismo e da intolerância. O trabalho foi feito somente em países da Europa. Mas remete ao que ocorre no Brasil.

Aqui, mais de 210 mil pessoas já morreram vítimas da doença. O presidente Jair Bolsonaro, porém, insiste em defender tratamentos sem comprovação científica, além de ter passado meses criticando as vacinas e o isolamento social.

Durante a pandemia, o presidente Jair Bolsonaro saiu diversas vezes sem máscara, promovendo alglomeração de apoiadores igualmente sem máscara, como neste passeio no dia 10 de janeiro deste ano, em Brasília Foto: Gabriela Biló/ Estadão

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“Uma maior polarização social e política pode ter acabado por custar vidas durante a primeira onda de covid na Europa”, conclui o estudo. O trabalho avaliou a correlação entre as mortes e a polarização política em 153 regiões de 19 países da Europa. “Observamos que maiores níveis de polarização indicam um número de mortes significativamente maior. Por exemplo, a diferença no excesso de mortes entre duas regiões, uma sem polarização das massas (2,7%) e outra com níveis máximos (14,4%), é mais de cinco vezes maior.”

O estudo é assinado por Víctor Lapuente, da Universidade de Gotemburgo (Suécia), e Nicholas Charron e Andrés Rodríguez-Pose, da London School of Economics. O trabalho está em processo de publicação no esquema pré-print (sem revisão de outros especialistas), na revista da Universidade de Gotemburgo.

Dificuldade na construção de consenso

Os autores propõem três mecanismos que explicariam esse fenômeno. O primeiro é que é mais difícil nas sociedades polarizadas a construção de consenso político sobre as medidas sanitárias a serem adotadas. Outro é que as prioridades são definidas em função das exigências dos grupos de pressão (empresários, por exemplo), em detrimento da saúde pública. O terceiro é que, com a polarização, as políticas se tornam mais populistas e menos baseadas em critérios de especialistas.

Os três mecanismos propostos no estudo são facilmente identificáveis no Brasil, dizem especialistas ouvidos pelo Estadão. Alguns exemplos são a defesa, por parte do presidente e do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, do que que eles chamam de tratamento precoce, que a ciência já mostrou não ter eficácia e a própria Anvisa se manifestou contrariamente no domingo.

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Outro é o questionável exemplo dado por Bolsonaro ao insistir em não usar máscara e ao provocar aglomerações. Há ainda as críticas infundadas às vacinas em desenvolvimento e o embate do presidente com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

“Desde o início estamos lidando com um negacionismo movido por pretensões políticas, pela vontade de agradar aos próprios eleitores, de se manter fiel a um tipo de discurso eleitoreiro”, resumiu a microbiologista Natália Pasternak, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Questão de Ciência. “A gente viu o presidente negando a gravidade da pandemia e politizando a questão dos remédios que toda a comunidade científica sabia que não funcionavam.”

Na análise de Natália Pasternak, o discurso político do governo brasileiro está desconectado da realidade. “Não interessa se tem gente morrendo; nesse tipo de discurso político, só interessa quem chegou na frente, quem fez a melhor vacina”, disse. “É uma completa desconexão com a realidade.”

No estudo europeu, a polarização é entendida como “tribalismo identitário” e “animosidade contra o outro”. No Brasil, há essa clara divisão entre apoiadores e opositores do governo. Por isso, o uso de máscara é muito menor entre os apoiadores de Jair Bolsonaro, e o isolamento social foi mais respeitado pela oposição.

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Outro artigo, publicado na revista Nature Human Behaviour, aponta “uma forte associação entre os níveis de animosidade partidária dos cidadãos e suas atitudes sobre a pandemia, assim como as ações adotadas em resposta a ela”. Um terceiro trabalho, na Science Advances, é ainda mais taxativo: “O partidarismo é um determinante muito mais importante da resposta de um indivíduo à pandemia que o impacto da covid-19 na comunidade desse indivíduo.”

A cientista política Sara Wallace, da Universidade da Califórnia, estudou essa relação nos Estados Unidos de Donald Trump. Lá, a polarização política determinou muitas das práticas adotadas na pandemia.

“Em circunstâncias de alta desinformação e falta de informação, as pessoas observam os exemplos; só podemos ser racionais se os nossos líderes forem racionais”, argumentou a especialista em seu trabalho. “Os americanos interpretam a pandemia de uma maneira fundamentalmente partidária, e as condições objetivas da pandemia desempenham, quando muito, um papel menor na configuração das preferências das massas.”

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Analisando o trabalho de Lapuente para o jornal espanhol “El País”, a professora da Universidade do País Basco Arantxa Elizondo explicou que duas questões centrais atrapalham a resposta científica à pandemia. São elas o medo da paralisação econômica e a busca por uma rentabilidade eleitoral.

“Isso não só é uma falta de humanidade, mas também um erro colossal”, disse a especialista espanhola. “Sendo assim, a polarização custou vidas. É grave que muitíssimas pessoas que morreram poderiam ter sido salvas com outra atitude. Isso mostra também que é mais difícil mudar o comportamento humano do que conseguir desenvolver uma vacina em menos de um ano.”

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Para os especialistas brasileiros, o maior desafio agora será convencer o maior número possível de pessoas a se vacinar contra a covid-19. Isso exige enfrentar o discurso negacionista e o consequente crescimento dos movimentos contrários às vacinas.

“Nosso maior desafio agora será convencer as pessoas a se vacinarem; quanto maior a polarização e a desconfiança das lideranças políticas, maior a dificuldade de adotar medidas de forma ampla”, afirmou a epidemiologista Ethel Maciel, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). “Efetivamente, temos vacinas para 5 milhões de pessoas, o que não cobre nem todos os profissionais de saúde. Acho que vamos ter um primeiro semestre dificílimo porque dependemos da produção das vacinas e do convencimento das pessoas para irem se vacinar ou vamos ficar numa situação bem complicada.”

Natália Pasternak concorda. Ela lembra ainda que a população brasileira, tradicionalmente, sempre foi favorável às campanhas de vacinação. “Agora, estimulado pelo próprio presidente, estamos vendo o crescimento do movimento antivacina”, disse. “Precisamos vacinar mais de 90% da população; precisamos convencer as pessoas a tomarem a vacina e voltarem para tomar a segunda dose; precisamos convencer as pessoas a continuarem a usar máscara; ou seja, precisamos de uma campanha de comunicação muito robusta, de transparência e clareza. Como vamos conseguir isso no meio de toda essa polarização?”

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