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Produção científica de mulheres e mães despenca em meio à pandemia de coronavírus

Questionário enviado para mais de 6 mil estudantes de pós-graduação, professores e pós-docs revela dificuldades; entre as pós-graduandas, apenas 10% estão conseguindo realizar suas pesquisas. 'Estadão' traz relatos dessas cientistas

Por Giovana Girardi
Atualização:

A química Lívia Soman, de 37 anos, mal havia saído da licença-maternidade e começava a engrenar novamente em suas pesquisas com fungos da biodiversidade brasileiro em busca de compostos potencial para uso humano quando São Paulo adotou medidas de isolamento social para conter o avanço do coronavírus. A cientista da Unifesp de Diadema se viu, então, diante da necessidade de retornar toda sua atenção para a filha de 1 ano e dois meses, que já não tinha mais como ir para a escolinha, e os cuidados com a casa.

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Pesquisadoras mulheres, especialmente as com filhos, têm visto sua produção científica despencar com as restrições impostas pela pandemia de covid-19. Se o isolamento trouxe dificuldades como um todo para a ciência, que teve de se afastar dos laboratórios e das possibilidades de ir a campo, paras as mães, até mesmo escrever artigos, algo teoricamente simples no modelo de home office, se tornou quase impossível.

Isso tem sido observado em todo o mundo e também no Brasil. Publicações científicas têm feito alertas de que a submissão de artigos por mulheres caiu ou se manteve estável enquanto as de homens cresceram nesse período de pandemia. 

'É uma situação que bate com todos os sentimentos que eu tenho. É um desafio até para a saúde mental. É pressão das agências de fomento, dos estudantes para corrigir os trabalhos, é pressão para publicar. E toda a preocupação com a família. Vem crises de ansiedade, momento de choro', conta Patrícia de Medeiros, mãe de Luna, de 1 ano e 9 meses. Foto: Arquivo Pessoal

Em abril, Elizabeth Hannon, editora adjunta do British Journal for Philosophy of Science, se manifestou alarmada no twitter sobre a queda drástica do número de submissões de artigos que recebia de mulheres. "Número insignificante de envios para a revista de mulheres no último mês. Nunca vi algo como isso", escreveu. 

Várias mulheres de diversas partes do mundo reagiram ao post, contando estarem frustradas por mal conseguir lidar com os cuidados infantis, os afazeres domésticos (muitas que tinham ajuda em casa deixaram de ter) e com o trabalho em meio ao isolamento e lockdown.

O portal americano Inside Higher Education, especializado em educação superior, ouviu editores de outros periódicos científicos e ampliou o cenário. David Samuels, co-editor de Estudos Políticos Comparados, afirmou para o portal que as submissões de artigos à sua revista haviam crescido 25% até o fim de abril, mas o aumento havia sido impulsionado inteiramente por homens. 

Um grupo no Brasil voltando para discutir maternidade e paternidade no universo científico, o Parent in Science, resolveu checar se o problema também estava acontecendo aqui e se deparou com um quadro parecido. O estudo foi passado com exclusividade ao Estadão

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Mais de 6 mil pesquisadores (entre pós-graduandos – a maioria –, docentes e pós-docs) responderam a um questionário sobre como a pandemia e o isolamento estão afetando seu trabalho.

Se de um modo geral o trabalho remoto afetou pesquisadores de pós-graduação (apenas 1/3 está conseguindo trabalhar de maneira remota), entre as mulheres, apenas 10% estão conseguindo realizar suas pesquisas. Entre os pós-docs, o cenário parece ainda mais grave: apenas 5% das mães conseguem manter sua produtividade durante a quarentena.

Entre os docentes, 20% dos homens sem filhos disseram não terem conseguido finalizar artigos para submissão durante a pandemia, entre mulheres com filhos, foram 51,38%.

Com base nos resultados, o grupo enviou uma carta à revista Science comentando a preocupação com as mães cientistas. O texto foi publicado na edição da semana passada.

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“A desigualdade de gênero na ciência é uma questão urgente e a maternidade desempenha um papel importante nela. Os últimos anos testemunharam o surgimento de muitas iniciativas que desencadearam mudanças para solucionar esse problema. Não podemos permitir que essa pandemia reverta avanços e aprofunde ainda mais a lacuna de gênero na ciência”, escreveram as cientistas lideradas pela bióloga Fernanda Staniscuaski, da UFRGS, que coordenou o estudo.

“Nossa preocupação inicial era com as alunas de pós-graduação, que não teriam como continuar trabalhando nas suas pesquisas com filho para cuidar em casa, ainda mais se tivessem um corte nas bolsas e se tivessem de cumprir o prazo original. A Capes prolongou as bolsas e o tempo, mas vimos que só 10% delas estão conseguindo trabalhar nas suas teses. Então docentes começaram a nos procurar para falar que não eram só os alunos que estavam tendo problema”, afirma Fernanda.

A diferença de gênero é clara. Homens sem filhos são os que mais estão conseguindo trabalhar: 36% dos entrevistados. Mas o que têm filhos também tiveram queda na produção. Só 18% dos alunos de pós disseram estar trabalhando sem dificuldades. Essa redução da atividade também leva em conta fatores práticos, como laboratórios fechados. 

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Fernanda afirma que o levantamento também pode ter um viés na comparação porque mulheres foram a maioria a responder o questionário, mas pondera que a situação real não deve ser muito diferente. Talvez se os homens estivessem sofrendo mais com essa situação também teriam tido interesse em participar da pesquisa.

'Tentei trabalhar com ela no meu colo. Eu estava concentrada no que eu estava lendo e, quando eu vi, ela tinha quebrado meu teclado. Não funcionam mais os comandos e não dá pra mandar consertar', conta Lívia Sonan, com a pequena Catarina Foto: Acervo Pessoal

Lívia, do início desta reportagem, estava escrevendo projetos, orientando pesquisas, quando veio a pandemia. “O problema não é a quarentena, mas a quarentena com uma bebê dentro de casa, de 1 anos e dois meses. Afetou muito o trabalho acadêmico. Meu marido também é professor e cientista, divide os afazeres domésticos comigo em 50%, mas ela é bebê, demanda muito de mim. E sinto que essa mudança toda afetou até o comportamento dela, que ficou mais carente”, conta.

Catarina ficava na escolinha das 9h às 17h e estava se desenvolvendo com os coleguinhas da mesma idade. “Eu me sentia muito confortável para trabalhar nesse período e agora não tenho como. Temos reuniões virtuais, a gente se reveza. Um entra no escritório, fecha a porta, enquanto o outro cuida dela, mas ela bate na porta, grita, fica falando mamãe, mamãe”, relata.

A pesquisadora tentou trabalhar com a menina no colo, mas não deu muito certo. “Eu estava concentrada no que estava lendo e não reparei que ela estava batendo no teclado do laptop. Quando eu vi, tinha quebrado, os comandos não funcionam mais. E nem dá para mandar consertar”, conta entre risos e lamentos.

Frustração e culpa

“Eu mal consigo ler um email. Mas tenho colegas que contam estarem com a maior produtividade da vida. Eu nem sei quem vou ser depois da pandemia, como vou correr atrás do tempo perdido. É uma sensação de frustração e culpa.”

Essas são palavras que se repetem entre outras pesquisadoras ouvidas na reportagem e também nos questionários enviados ao Parent in Science. A etnobotânica Patrícia de Medeiros, de 33 anos, professora da Universidade Federal de Alagoas, também estava na retomada dos trabalhos pós licença-maternidade quando teve de deixar Maceió para Arapiraca, no interior do Estado, ajudar a sogra que passa por um tratamento de câncer e não podia ficar sozinha em meio à pandemia.

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Na capital, sua mãe ajudava a cuidar da bebê de 1 ano e 9 meses, mas mesmo se tivesse ficado lá, não teria como contar com essa ajuda porque a mãe é idosa e, portanto, grupo de risco.

“De 8 horas de trabalho, passei a começar a trabalhar quando ela dorme. E essa menina dorme à meia noite! Mas ainda assim não faço nem quatro horas. A produção está atrasada, a prestação de contas que tenho de entregar no fim do mês. O prazo está chegando e não vai conseguir cumprir. Vem crise de ansiedade, momentos de choro, culpa.”

Linha de frente contra a covid-19

Para quem está na linha de frente sobre os estudos da covid-19, o cenário é um pouco diferente, mas também dramático. Com um senso de urgência, responsabilidade aumentada de trazer respostas, as pesquisadoras estão se desdobrando em estratégias, muitas horas trabalhadas e poucas de sono, para dar conta de tudo.

“Se eu não tivesse virado a pesquisa para o coronavírus, muito provavelmente não estaria nem trabalhando, porque é muito difícil mesmo”, afirma DayseHaime Pastore enquanto ajuda o filho de 13 anos a estudar matemática Foto: Acervo pessoal

A matemática Dayse Haime Pastore, de 42 anos, do Cefet/RJ, faz projeções de crescimento da doença e de lotação de leitos de hospital. Ela mudou sua frente de pesquisa diante da pandemia. Antes, ela fazia simulações de ação de um remédio contra HIV. 

Imediatamente antes de dar a entrevista, ela estava estudando matemática com o filho, de 13 anos, que teria prova no dia seguinte. Acompanhar as aulas dele online é uma demanda de atenção extra. “Não é fácil para as crianças aprenderem online. E se não é fácil para as crianças, não é fácil para os pais”, diz. A frase é interrompida pelo marido, de longe: “Mas ele está se saindo muito bem.” Ela concorda.

Mas para ajudar, eles pegaram um filhotinho de cachorro. “Ele estava sentindo falta da escola, dos amigos”, conta Dayse.

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O marido, também matemático, tinha acabado de ir para a França, para um período de seis meses, quando a pandemia começou e ele voltou para o Brasil. Os dois montaram uma “supeorganização”, como ela diz, para que os dois pudessem continuar trabalhando, dividindo as tarefas da casa e os cuidados com o filho. 

“Se eu não tivesse virado a pesquisa para o coronavírus, muito provavelmente não estaria nem trabalhando, porque é muito difícil mesmo”, conta. 

“Políticas e ações para mitigar a pena de maternidade podem beneficiar todos os cientistas. Os prazos para propostas de subsídios, relatórios e solicitações de renovação devem ser adiados. As agências de financiamento devem considerar a criação de programas de concessão projetados em torno da realidade dos acadêmicos com as famílias. Ao instituir políticas mais flexíveis, podemos tornar a ciência mais justa para todos os afetados pela pandemia”, defenderam as pesquisadoras do movimento Parent in Science.

Prêmio para mulheres na ciência

Para apoiar o trabalho de jovens pesquisadoras nesse complicado período de pandemia, o programa Para Mulheres na Ciência, realizado há 15 anos pela L’Oreal, em parceria com a Unesco e a Academia Brasileira de Ciências, prorrogou as inscrições até a próxima sexta, 22. O programa premia sete mulheres das áreas de Ciências da Vida, Ciências Físicas, Ciências Químicas e Ciências Matemáticas com uma bolsa de R$ 50 mil. As inscrições podem ser feitas no site do programa.

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