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Opinião|Surdo no escuro

Nossos arranha-céus são uma coleção de armadilhas sensoriais

Atualização:

Você já caiu em uma armadilha sensorial? Se já entrou de cara em uma porta de vidro, tenha certeza de que caiu. Sempre que os sentidos são enganados, e esse engano provoca comportamentos bizarros, dizemos que o ser vivo caiu em uma dessas armadilhas. Sistemas de iluminação pública são armadilhas sensoriais que prendem insetos voando ao redor de um sol que não existe. Cães latem para suas imagens no espelho. 

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Os órgãos sensoriais evoluíram em ambientes sem portas de vidro, lâmpadas na escuridão e espelhos. Não foram selecionados para lidar com essas realidades criadas pelo ser humano. Se as planícies africanas estivessem cheias de placas de vidro e espelhos, é provável que os cães não estariam latindo para espelhos e nós não bateríamos o nariz no vidro. 

A novidade é a descoberta de uma armadilha sensorial que engana morcegos. Nosso sistema visual capta a luz vinda de objetos e usa essa informação para identificar obstáculos e orientar nossa locomoção. Apesar de sofisticado, há dificuldade em detectar os reflexos sutis de uma porta de vidro. 

Os morcegos se orientam no escuro a partir dos sons captados pelo sistema auditivo. Para isso emitem gritos repetitivos que atingem os objetos e voltam aos seus ouvidos. Com base na direção do som e o tempo que o eco leva para chegar, seu cérebro consegue calcular a distância e a orientação dos objetos. É um sistema sofisticado. Muito conseguem navegar por labirintos e capturar presas em pleno voo, usando esse sistema sensorial.

Mas como os morcegos lidam com objetos que não refletem o som? É o caso de superfícies muito lisas, como um lago. Essas só refletem o som se o morcego estiver exatamente em cima. Se o lago estiver mais para a frente, o som bate na superfície e não volta, pois é refletido para longe. Um lago deveria ser “invisível” para morcegos. Mas dão rasantes em lagos para beber água. O que os cientistas imaginam é que morcegos, quando detectam um local horizontal de onde não vêm ecos, deduzem que é uma superfície líquida. Mas era preciso comprovar.

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O experimento foi feito em um túnel de paredes ásperas escuro onde foram instaladas câmaras de infravermelho capazes de filmar os morcegos. Nesse túnel foi instalada uma superfície plana, perfeitamente lisa. Em um experimento, ela foi instalada no solo do túnel, simulando a superfície horizontal, como um lago. Em outro, foi instalada na parede lateral do túnel, em posição vertical. Os morcegos eram soltos no túnel e seu comportamento, filmado. 

Foram usados 21 morcegos, que ficavam no túnel de 5 a 15 minutos, o que fazia com que passassem pelas placas por volta de 20 vezes. Dos 21 morcegos, 19 colidiram com a placa vertical e nenhum colidiu com a horizontal. Mais interessante: 13 tentaram beber água na placa horizontal. Logo antes de colidir, quando estavam muito próximos da placa, tentavam desviar, mas em muitos casos era tarde, se chocavam com a placa. Isso nunca acontecia com a placa horizontal.

Esse experimento foi repetido na natureza, colocando as placas perto da entrada de um ninho de morcegos e filmando seu voo. O resultado foi confirmado. A conclusão é de que nos dois casos a placa horizontal ou vertical é percebida o como local de onde não chega eco, uma espécie de buraco negro. Caso esse “buraco” esteja na horizontal, o cérebro do morcego deduz que lá tem um lago. No caso da placa vertical o cérebro deduz que lá não há nada, um espaço por onde ele pode passar. Mas, ao tentar passar, dá de nariz com a placa. 

Esse experimento é o primeiro a descrever uma armadilha sensorial de morcegos. Na natureza só há superfícies horizontais que não refletem som, portanto o cérebro do morcego é incapaz de identificar uma placa vertical. O morcego é surdo para superfícies lisas verticais. Somos cegos para essas superfícies.

Os cientistas alertam que prédios construídos de vidro provavelmente são “invisíveis” para os morcegos. Nossos arranha-céus são uma coleção de armadilhas sensoriais.

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MAIS INFORMAÇÕES: ACOUSTIC MIRRORS AS SENSORY TRAPS FOR BATS. SCIENCE, VOL. 357, PÁG. 1.045 (2017) 

É BIÓLOGO

Opinião por Fernando Reinach
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