EXCLUSIVO PARA ASSINANTES

Opinião|Tártaro pré-histórico

Pessoas do leste aprenderam com pastores do oeste a lidar com animais domesticados

PUBLICIDADE

Atualização:

Analisando o tártaro de dentes pré-históricos e o DNA de populações humanas foi possível identificar quando e como o modo de vida pastoral chegou nas planícies do oeste da Ásia. Foi por volta de 15 mil anos atrás que populações humanas conseguiram escravizar plantas e fazê-las produzir grãos exclusivamente para uso humano. É o que chamamos de agricultura. Com esse desenvolvimento tecnológico, o humano pôde deixar de vagar para coletar alimentos e se fixar nas primeiras cidades. Essa tecnologia permitiu ao homem usar plantas para transformar a energia solar em matéria orgânica, que depois é comida. Surgiram os agricultores.

Pessoas do leste aprenderam com pastores do oeste a lidar com animais domesticados Foto: REUTERS/Ilya Naymushin

PUBLICIDADE

Na mesma época, populações humanas desenvolveram outro modo de escapar da vida de coletores e caçadores, escravizando animais. Com a domesticação, não precisavam ser perseguidos e mortos: bastava acompanhar os animais domesticados à medida que se locomoviam à procura de comida pelos pastos abertos. Animais escravizados transformam vegetais em carne e leite, por sua vez ingeridos pelos humanos. Assim surgiram os pastores.

Enquanto os agricultores se espalhavam por terras férteis e úmidas, os pastores se espalharam pelo noroeste da Ásia, povoando as estepes frias do que hoje é a Rússia. Mais tarde esses dois grupos se encontraram na Europa e no Oriente Médio, e surgiram as civilizações onde a plantação de vegetais se juntou à criação de animais. Em locais onde o clima não é propicio para a agricultura, como a Mongólia, até hoje populações vivem do pastoreio. Esse modo de vida não leva ao aparecimento de grandes cidades, pois os pastores acompanham seus rebanhos em busca de pasto durante todo o ano.

Hoje o pastoreio está presente no leste da Ásia, mas como chegou lá? Alguns cientistas acreditavam que os pastores do oeste, ao migrar para o leste, destruíram as culturas de caçadores coletores que viviam na região. Agora foi descoberto que isso não é verdade. O que existiu foi uma transferência de tecnologia. Milhares de anos atrás os habitantes das estepes do leste aprenderam com os pastores do oeste a lidar com animais domesticados. 

O mais interessante é como os cientistas descobriram que foi isso que ocorreu 4 mil anos atrás. Já é sabido que as populações das estepes do oeste são geneticamente distintas das populações das estepes do leste. Basta comparar a aparência de um habitante da Rússia com um da Mongólia. 

Publicidade

Para estudar as populações que viviam nas estepes do leste, região no norte do deserto de Gobi, hoje China, os arqueólogos escavam pequenos montes de pedra que eram usados como túmulos. Em uma dessas escavações, em Arbulag Soum, foram achados vários esqueletos de cerca de 3,4 mil anos atrás. Analisando o DNA extraído desses esqueletos foi possível demonstrar que eram da linhagem de caçadores coletores mongóis que habitavam essa área muito antes da domesticação dos animais. O mais interessante foi o que os cientistas descobriram quando analisaram o tártaro presente nos dentes desses esqueletos.

O tártaro é aquele material que os dentistas removem de nossos dentes quando fazem limpeza. Consiste em placas bacterianas e restos de comida calcificados, que, você deve saber, são muito duros, petrificados. O tártaro nesses dentes milenares foi removido, o material calcário que os preservava foi removido quimicamente, e as proteínas foram analisadas. O que os cientistas acharam foram fragmentos de proteínas que só há no leite.

Sequenciando essas proteínas foi possível descobrir que elas não derivavam de leite humano, mas sim de leites de bovinos, carneiros e cabras. Também foi possível determinar que o leite ingerido por essas pessoas não era de animais locais, como camelos ou cavalos. A conclusão é que essa população já consumia leite de animais domesticados. Como sabemos que esses animais foram domesticados pelas populações do oeste das estepes (Rússia) e os donos dos dentes pertenciam a grupos mongóis, que nunca haviam convivido com esses animais, a explicação mais provável é que, com a chegada de pastores do oeste, as populações das estepes do leste aprenderam a criar esses animais e adotaram esse modo de vida.

Esse resultado mostra que, nas estepes do leste, as populações abandonaram a vida de coletores caçadores e se tornaram pastoras após terem aprendido esse modo de vida com as populações do oeste, que não só transferiram o conhecimento como forneceram as espécies de animais. Mais tarde, essas populações domesticaram os cavalos locais, passaram a beber seu leite e a cavalgar. Foi essa população que mais tarde cruzou o estreito de Bering, que liga a Rússia ao Alasca, e colonizou as Américas. Foram seus descendentes que Cabral encontrou por aqui quando aportou no sul da Bahia no ano de 1.500.

MAIS INFORMAÇÕES: FBRONZE AND AGE POPULATION DYNAMICS AND THE RISE OF DAIRY PASTORALISM IN THE EASTERN EURASIAN STEPPE. PROC. NAT. ACAD. SCI. USA. 2018*É BIÓLOGO

Publicidade

Opinião por Fernando Reinach
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.